Carta ao Amado ( Para Concurso de Bossa Nova do Estadão)

Para viver um grande amor é preciso apenas coragem. Oxalá eu a tenha daqui a pouco, quanto terminar essa carta.Sempre fui sua, Zambi! Mas só pude perceber isso quando olhei o relógio e o tempo passou a ter outro valor, diferente do que eu conhecia. O tempo era particularmente nosso. Tão nosso que nos casamos naquele domingo chuvoso de janeiro tendo como testemunha a incompreensão alheia. Um casamento simples em que vesti azul representando o céu que você me proporcionava. Você estava lindo em branco do seu orixá! Só nossos sorrisos decoravam a sala aconchegante.Estava plena! Não me importava seu passado com tantas outras e nem o negativismo de todos ao redor. Eles não devem entender nada de paixão.Você podia ter me esperado! Mas quis partir no frio de julho, enquanto eu só chegaria na esperança da primavera. A ausência do encontro dos nossos olhares cúmplices nunca foi impedimento pro nosso amor. Hoje quero lhe falar das pequenas coisas que me faltam, justificando essa angústia preste a acabar. Não me cabem mais apenas as canções e sonetos! Faltam-me as pequenas coisas de nossa intimidade. Eu ainda não sei preparar o uísque da forma que lhe agrada, nunca me fiz bela pra você. Não compartilhamos momentos numa tarde em Itapoã, porque se o tivéssemos feito eu teria lhe dito: - Cante "Fazer amor em Itapoã", é muito mais você!Cantaríamos e teríamos um riso bobo em nossas faces denunciando nossas intenções naquele momento.Não fui elogiada por seus tantos amigos, ao preparar minhas poucas especialidades culinárias nos encontros que você tanto gostava de fazer.Somos! Mas não fomos tantas coisas... Zambi, são muitas as ausências que me afligem...Não quero mais esse negócio de você longe de mim e por isso escolhi uma forma doce para morrer. Acomodei em vasos uma quantidade farta de lírios da noite. Foi esse o bálsamo que escolhi para impregnar a sala em que daqui a pouco serei encontrada com essa carta aninhada em meu colo. Calculei o tempo que gastaria escrevendo estas linhas, para coincidir exatamente com o ápice do perfume das flores. Eu acabaria com a poesia se não pensasse nos detalhes! Até pra morte há de se ter poesia!Tentei ser enterrada perto de você no São João Batista...Mas a burocracia estava tirando o humor e serenidade que gostaria de ter nos meus últimos momentos em vida. Decidi ser cremada.

(A quem encontrar esta carta: o telefone do crematório está logo abaixo. Está tudo pago e com a orientação de ter minhas cinzas espalhadas pelos céus do Rio de Janeiro. Eu amo e sou grata a vocês, mas nossas trocas já me fizeram feliz o suficiente, agora me lanço na busca do que me falta.)E que este seja o primeiro registro oficial de alguém que realmente tenha morrido de saudade.

Até breve, muito breve!

Com amor, Sua décima esposa