Séculos e féculas
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Não há maldade em nenhum gênesis – pensa um homem a quem costumam chamar de Riajin.
Ele observa o mundo diante de si e suas feições naturais. Perscruta o sorriso da floresta virgem, quase imperceptível naquela noite de eclipse lunar, e se delicia com a brisa que sopra carinhosamente por quase todo o perímetro do alpendre da casa bucólica que escolhera como refúgio. Incrustada numa rocha, a vetusta construção, edificada ainda no Império, possui numerosos e enormes quartos e uma mobília compacta que em nada se compara aos aglomerados que se esfacelam ainda no decurso do pagamento efetuado em numerosas parcelas. Os prazos se alongam no tempo, mas a volatilidade construtiva reduz a durabilidade do bem numa desproporção tão assustadora quanto à praticidade da confecção do novel adorno. Os móveis, assim como toda a arquitetura, eram imponentes e exigiam um respeito soberano que se impõe como uma força em si mesma. Os atuais modelos, tão padronizados quanto o modo de pensar, de agir e de falar das pessoas, encontram amparo em apelos subliminares que nos iguala e nos nivela ao rés do chão.
As paredes foram erigidas em blocos de quatro tijolos. Especulou-se, por ocasião da recente reforma, uma arquitetura mais leve – ideia sumariamente refutada por Riajin, um amante do antiquado e, principalmente, da mística arquitetura, ainda hoje pesquisada e admirada por especialistas, anterior ao concreto.
Da cadeira, onde o movimento pendular sugeria infinita quietude, simbolizando o tique-taque do indelével tempo, ele também pensa na humanidade. Entende a grandeza das montanhas, das florestas e dos mares. Tentando inutilmente contrariar a intangibilidade física, ele fita o olhar ao plano do seu campo visual, paralelamente ao solo. Não há dúvida. Não há temor. Não há insegurança. Há única e tão somente uma busca. O solitário homem de meia idade tenta se imiscuir no negrume da floresta, a não mais de vinte metros de onde se encontra; ele quer penetrar num mundo quase completamente inatingível aos olhos. A acuidade visual que o invade naquele momento é apenas o retrato em preto e branco de um microcosmo multifacetado que a monocromia da noite o priva naquele instante. E o que dizer do mar, do imenso azul harmoniosamente complementado com o anilado halo do firmamento? Ele pensa na vida e no seu ciclo, do nascimento à morte. No mundo de águas onde se protege o feto; na vida cheia de tons amarronzados decorrentes dos trabalhos e dos embates que a sobrevivência nos impõe; desde as mais singelas às exageradamente pomposas, são todas essencialmente cíclicas e efêmeras.
É o homem que está no ponto mais alto, sobrepujando as demais belezas terrenas – pensa. – É ele o ápice da criação. Livre e criativo, somente o homem possui o dom da palavra. Somente ele influencia conscientemente o devir.
Onde nasce o rio que banha esta paisagem? Ele é puro! Ele nasce de um tênue filete da vida mineral, consolidando-se em virtude da força que exorbita da união de suas minúsculas partículas. Qual a origem do homem que se banha nesse mesmo rio? Ele se transforma a cada novo banho? O tempo modifica o homem e o rio como acreditavam os antigos sábios da antiguidade grega? Ou é apenas mais um estático espectador de um conchavo universal de aparências e de máscaras genuinamente projetadas, contrastando com a dinâmica física dos corpos? Mas por quem? Com que intenção? E se há eternidade como a entender quando somos tão passageiros e frágeis?
O rio quando percorre seu álveo e se mistura à paisagem, arrasta raízes, dá mais vida ao solo e se transmuta ao trocar experiências adquiridas ao toque do arrasto junto ao outro, com seus naturais e próprios elos que se firmam ao longo do percurso... Mas o rio pode mudar o destino de suas águas, continuando rio.
Há um homem mau, mas há o homem amparado pela graça.
‘O rio só atinge seu objetivo porque aprendeu a contornar seus obstáculos’. O homem, ao romper seu destino, decompõe-se em si mesmo e o que havia se reduz ao caos.
Temos uma terra. Vejam nossa prole, que maravilha! Ah! Se os homens repartissem com o mesmo quilate característico das multiplicações.
– Pai, o senhor viu como a lua está linda?
– Vi sim, bebê!
– Pegue uma estrela pra mim!
– Não prometo agora, mas quando a próxima estrela cair do céu, você pode ter certeza de que fui eu quem a derrubou pra você!
– Oba, pai! Será que ela cai ainda hoje?
– Elas são opiniosas e teimosinhas iguais a você, sabia? Não acha melhor a gente esperar que uma delas venha a cair, o que acha?
– Queria uma aqui na minha mão! E se ela cair e quebrar? Ela está tão alta...
– Vai deitar, bebê! E sonhe com uma estrela, bem grandona, descendo do céu e caindo suavemente bem aqui, ó, na palma da sua mão!
– Faz cosquinhas, pai! – respondeu minha filha, puxando a mão antes que eu me fizesse cadente. – Bênção, pai! Vou dormir e sonhar com a estrela mais linda!
– Isso você não pode!
– Por quê?
– Porque a estrela mais linda do mundo é você!
Ela me deu um beijo no rosto e me abraçou.
– Oba! Sou a estrela mais linda!
Como explicar para minha filhinha que minha promessa, criando uma inocente e profunda inspiração, nunca se realizaria em sua completude, apesar das dificuldades e dos conflitos da nossa existência? Quiçá ela um dia se deslumbrasse com a estrela cadente... Mas o contato com aquela mãozinha, a materialização do pueril sonho erigido graças ao amor de um pai, deixaria marcas e sofrimento. Os sonhos precisam se concretizar? Há sonhos que se realizam descortinando a lucidez da ilusão e provocando desalento. Melhor enxertar a dor da realidade com o tempero do imaginário. Os pés juntos ao chão nos permitem sonhos; sonhar desapercebidamente pode derreter nossa divina cera, tornando-nos estrelas soltas ao bel prazer da gravidade.
O homem ensejou o advento de uma fantasia. Toda criação é do bem, perdendo seu curso benigno quando nos impomos, a nós mesmos, individual e coletivamente, a insígnia da auto-suficiência. Na escassez fraternal, afogamo-nos em nosso egoísmo e impomos ao nosso semelhante o abjeto holocausto da escravidão.
O homem resolve se levantar. Vai à cozinha. Bebe água. Retorna ao ponto inicial e fecha mais um ciclo, sem muitas teias nem ramificações. Afinal, os complexos emaranhados nada mais são que simples elos que se superpõem.
A brisa o acompanha em todos os passos. Ele tem a sensação de estar sendo abraçado pelo vento. Sorri.
No quarto, a filha, já adormecida, parece sobressaltada e repete, com a palma da mão estendida, uma única palavra:
– Aqui! Aqui! Aqui!
Isso mesmo, filhinha. – pensa o pai. – Corra atrás dos seus sonhos que eles acabarão exatamente ‘aí’, na palma da sua mãozinha. – Ele não a vê, mas o silêncio que impera dentro dos compartimentos da velha casa alpendrada denuncia o menor impulso sonoro dissipado. Os regulares e cadenciados sons do deambular unitário do alvissareiro homem, durante o trajeto até a cadeira vazia que ainda o abriga em pensamento, são substituídos pelo pendular movimento do balançar da cadeira secular. Perquirindo o mais íntimo da alma, o homem também descansa o corpo abatido incessantemente pelas marcas do tempo.
O eclipse se desfaz no firmamento a passos largos. Das pseudo-trevas a que se submetera, a lua desponta, surgindo num matiz amarelado, denunciando cansaço. Há quanto tempo estaria ali a nos vigiar? Parecia derrotada após longos anos como testemunha ocular de tantas atrocidades; mas o tom alaranjado, como a refletir uma medalha de ouro conquistada há priscos tempos, faz a lua de outrora emocionar-se ao relembrar o mais puro e intenso amor inspirado no céu, ao som das trombetas; revive as cenas do recorrente tema do amor, externadas ao som dos acordes de trovadores medievais; e se envaidece quando, ao som de um violão, um mancebo se valeu da sua luz para declamar, em poesia melódica, uma ária exaltando o cúpido cupido. Mas é esta mesma lua que nos faz recordar dos lobos e de seus uivos – lobo do homem, homem lobo... Onde existiria e reside a verdadeira metonímia marsupial? Quem seria a criatura e o criador? Mais próximo de sua realidade territorial, o homem pensa no saci-pererê, mesmo sem haver qualquer relação entre sua mística e a lua... Sente um arrepio e se transporta para o distante mundo dos vampiros. Seriam nossos lobos modernos, algozes metamorfoseados pela alegórica imaginação do homem? Quem primeiro nasceu: o lobo ou o vampiro? O silêncio ou a miríade de sons que nos atormenta o mundo hodierno?
E continua o homem absorto em suas digressões...
O olhar lançado ao infinito por tantos poetas que buscaram no primeiro dos nossos satélites a luz da palavra perfeita que antecederia declarações de amor, não poderia ter sido o mesmo sentimento que impulsionara iluminadas almas desbravadoras do mundo terreno, onde a luz do luar os guiou à mercê das estrelas. Oh, luar de estrelas, amoleça esses corações!
Houve descobrimentos. Festas. Missas; desbravamentos, guerras e maldições também.
Os navios, enquanto criaturas, eram bons. Eles asseveravam a força do vento no embate entre límpidos estandartes de velas catalisadoras do deslocamento. Os navegantes... Eles propiciaram o êxodo, mas não pregaram justiça. A liberdade que os ventos prometiam, colimada pelo prisma da luz divergente do arco-íris de cristal, transformou-se em deliberada maldade, oprimindo os novos povos que surgiam. Foram viajantes, navegantes, escravos, aventureiros, piratas e bandeirantes. Todos eles alvos do tempo e agora não mais que lembranças para as gerações que se sucedem. As criaturas mudaram, mas a regras do jogo se mantêm, pois não se sustenta o garbo sem a fragilidade da servidão.
Os homens não querem livrar-se do egoísmo – pensa Riajin, o homem assim chamado pelos amigos. Na realidade, um estranho recém chegado ao lugarejo e cheio de comportamentos esquisitos – comentam os moradores. Quase nada se sabe sobre ele. Apenas as obrigações paternas conseguem tirá-lo da proteção que aquele ambiente aprazível, apesar de solitário, proporcionava. É um homem taciturno, mas não era misantropo como se dizia pelos arredores. Trocava poucas palavras com os agregados da casa – não por maldade ou ojeriza. Nunca tratou nenhum deles com avania. Ele apenas se prendia constantemente a suas próprias reflexões, mas, ao menor interesse de um dos ajudantes, ele se punha a esmiuçar sobre a vida, as pessoas e as coisas.
Àquela hora da noite, apenas o caseiro o observa, atento. Ele se aproxima do homem e o silêncio, apenas quebrado pelos silvos uníssonos da brisa, é interrompido pela voz grave e melosa do morador:
– O senhor está sem sono?
– Não. Estou sem sonhos...
Silêncio.
– Carece de sonhar ainda?
– Claro! Ainda estou vivo e a intensidade da existência se esvai ao cerrar-se do derradeiro sonho.
– Prosa bonita, patrão. Também sonho com meu lugarzinho pra morar, só meu e da minha patroazinha que está em casa agora. A vida pra mim sempre foi duvidosa. Vida de trabalho, de sofrer...
Vida onde o alvorecer de cada dia nada mais é que a sucessão do crepúsculo que finda permeado pela madrugada cheia de encantos e de mistérios.
– Ouço trombetas! – grita o homem, em voz altiva. – Ouço os gritos dos navegadores... Agora um religioso celebra uma missa, a primeira, e nos abençoa a todos. Ele diz que esta terra é gloriosa, cheia de encantos. São séculos de escravidão! Quão maravilho parece ser meu feérico mundo. Já são séculos de escravidão – repete Riajin quando é interrompido:
– Trombetas? Navegadores? O padre é o Padim Ciço? Precisa dormir, patrão.
– Não. Preciso é acordar do meu sono e buscar minha própria estrela antes que ela caia em mãos de piratas ou de quaisquer outros malfeitores.
– O senhor parece mesmo é de ter endoidado, patrão... Incomodo?
– Não, você não incomoda. Sente-se. Vou contar pra você a história de um sonho.
E lá do alto, no exato momento em que se inicia a narração, uma solitária estrela cai. O encantamento da queda revela que os sonhos são apenas o intocável reflexo dos nossos momentos de inconsistente lucidez.
Nijair Araújo Pinto
Crato-CE, 17 de agosto de 2008.
02h05min