Conciliação

O dia amanhece em Gaza. Uma nuvem de poeira e frio encobre a cidade e os primeiros trabalhadores já estão de pé. Há mulheres com suas crianças pequenas a caminho da escola. Algumas delas brincam com cães em campos com flores na frente das casas.

Senhor Majid, um palestino que viveu refugiado há alguns anos no estado com sua família, atualmente reside num dos loteamentos mais turbulentos da faixa. Um lugar onde convivem dois povos em pleno confronto religioso, embriagados pelo desejo da “Terra prometida”, uma terra sagrada, retratada e proferida em textos bíblicos, uma promessa divina a ser cumprida.

Majid casou-se com uma francesa de pais egípcios, estes refugiados na França durante as invasões britânicas na década de 60.Desde que foram expulsos de sua terra moram no assentamento Tell Nebi, um dos mais populosos da região. Lá, nasceram as duas filhas do casal, Desiré e Nira.

Desiré é a mais velha, já cursa o ginásio e segue fervorosamente a vocação islã do pai em aulas nos centros de estudos islâmicos todas as tardes.A doçura dos seus ainda 13 anos revela-se em toda a paixão do seu sorriso, gestos faciais e cabelos escuros. A fronte confusa em meio ao vento compõe assim a sua beleza, refugiada sob a manta negra e solitária como os seus cabelos, que dançam com o vento que sopra nos dias empoeirados de Gaza.

Os dias nos assentamentos nesse estreito e disputado terreno transcorrem como em um bairro comum do Oriente Médio com suas rotinas, seus trabalhos e habitantes.

A alguns metros de distância da Rua das Oliveiras, vê-se a mercearia do senhor Davi, um judeu aposentado pelo exército israelense há 20 anos. Sr. Davi foi um dos primeiros colonos israelenses a ocupar os terrenos de Gaza, e através do Movimento Sionista judeu ajudou a formar a comunidade judaica naquelas terras.

Enquanto abastece com a reserva de mantimentos que acaba de chegar, vindos de um dos carretos que encomenda todas as terças-feiras, os meninos Lucas e Simas guardam a Torá e conversam à porta de casa. É mais um dia de escola.

Cumprimentam o pai à porta da mercearia e no caminho encontram Desiré, cadernos à mão e com a pressa já habitual trazida pelas abordagens constrangedoras da guarda israelense no trajeto a escola. Após a aula, Desiré vendia alpercatas de couro numa feira logo na entrada da cidade.

Lá, permanecia até a hora dos encontros amorosos com Lucas, o garoto judeu que lhe sorria simplesmente por não ver seu rosto. No começo, Lucas levava doces da mercearia só para ver os dentes da menina palestina. E assim seguiam os encontros proibidos numa cidade onde o ódio imperava na vila triste dos palestinos e judeus, povos confrontados pela disputa, hostilidade e intolerância.

Pelas ruas, não é tão fácil driblar a atenção dos soldados israelenses atentos e ligeiramente agressivos em suas abordagens diárias, hostilizando e intimidando os meninos palestinos e forçando-os abrir as mochilas ao cochichar piadas sobre suas roupas e excesso de livros nas mãos. Após avistar Lucas e o irmão Simas, cumprimentam-se ao longe por gestos quase irreconhecíveis, capazes de confundir qualquer um que os observassem.

Os encontros sempre eram difíceis, sabiam eles. Esta união certamente poderia ser um grande castigo, uma vergonha para suas famílias saber que durante as tardes nos galpões, aqueles jovens liam os livros sagrados e cantavam músicas juntos e assim, conheciam mais e se respeitavam mutuamente. Falavam sobre as conversas de suas casas, as rotineiras reclamações dos seus pais, ali tudo era bastante divertido e necessário...

Hoje, Simas, irmão de Lucas, é desafiante em uma partida de xadrez na residência dos Hiazshi, e como era uma revanche na casa de uma das famílias mais tradicionais da cidade, prometeu encontrá-los até a hora de voltar para casa.

Era comum Simas ausentar-se e perambular pelas ruas ao perceber a sombra de um beijo que viria entre os dois. Como que num ato de defesa, Simas os abandonava, sufocando a paixão que nutria pela namorada palestina de seu irmão. Sentia que, para os dois a sua presença significava pouco ou quase nada, e que preferiam ficar sozinhos, sempre.

Lucas, no entanto, já aguarda Desiré desde a saída da escola, pois resolveu sair mais cedo da aula de política. Eram aulas cujo objetivo era fortalecer e integrar a comunidade israelense já tão densa e predominante na região, determinada a criar um Estado pertencente a Israel.

Durante o caminho para o galpão, um jornaleiro vendia o jornal do dia com as seguintes Manchetes: “Mais 30.000 palestinos refugiados ocupam clandestinamente a Síria.” Centenas de israelenses ocupam assentamentos na Cisjordânia. “Ministro Ariel Sharon ainda encontra-se em estado grave em Tell Aviv”.

Lucas lê algumas páginas da Tora e dorme sobre a lona durante o tempo que resta para o encontro com Desiré. Sonolento, ele não vê Desiré.

A garota o acorda com um beijo sufocante, o qual se entrega apenas um pouco assustado em sua meninice masculina no calor dos seus poucos 14 anos. Então, Lucas leva as mãos até os pés da garota e arrasta-lhe a manta longa, tocando o seu corpo moreno até mostrar-lhe o dorso nu e rijo por inteiro, alojando-se sobre o corpo do garoto esguio e sem camisa.

Toca-lhe os seios com toda a pressa e entusiasmo trazido pelo esconderijo da farda inteira que lhe cobria todo o corpo. Os dedos, estremecidos e encurvados pelo deleite do toque, deitam-se sobre o corpo da jovem quando uma língua, peregrina e curiosa, passeia entre curvas e o dorso pulsante e ofegante daquela meninice ensurdecida.

A vulva acesa e aquecida irradiava sobre seu corpo ofegante cor de bronze toda a força dos seus prazeres juvenis. A pele que se recobria da saliva confunde-se ao sabor dos suores do cúmplice, revelando um ao outro seus corpos entrincheirados. A carne pulsava e exalava os sabores do seu corpo secreto, recoberto pelas sombras do tecido escuro ao longo do dia escolar e religioso.

Eram durante as tardes ocultas naquele galpão abandonado e livre da hostil convivência de vizinhos inimigos que se abasteciam um ao outro, alimentando de maneira clandestina todo o universo proibido dos desejos mais desafiadores, afastados de todo ódio que inflava a cidade inteira. Estavam entregues e encarcerados pela curiosidade adolescente, encantados pela captura das suas essências inimigas como que embriagados pelas descobertas de mundos limítrofes, confrontados, porém libertos pela suas juventudes.

Revelam-se agora como cúmplices, seguros e mais próximos a cada afago entorpecido dos beijos que se atiram dos lábios ansiosos e sedentos em busca da pele e dos corpos que já transitam e passeiam um pelo outro, assim como nunca poderiam fazer numa das ruas da Cisjordânia dividida e triste.

Conciliados pelo desejo que lhes enrubesce a face e detidos pela paixão que infla seus sentidos, os jovens desertores mantêm-se anexos um ao outro, incansáveis e satisfeitos ali, naquele galpão escurecido, distante de tudo, da guerra política em que tinham se transformado a busca de seus povos por dignidade e direitos.

A demora do irmão Simas já os trazia alguma preocupação, mas já era comum encontrá-lo divertindo-se com os jornaleiros da cidade, após as disputas de xadrez que o distariam tanto. À espera do garoto, os dois cochilam sob o chenil antigo, anestesiados pelo cansaço da entrega.

Simas, no entanto, já estava nas proximidades do galpão há algum tempo, refém do frio que se inicia com o fim das tardes naqueles terrenos baldios e ermos.

Mesmo assim, permanece ali, escondido. O garoto aguarda e está certo de que o sono da paixão dominaria aqueles corpos em algum momento. Ele planeja tomá-los pela espera, pelo sono e cansaço dos corpos amantes a fim de realizar o intuito que o atormenta a alma, dividida pelos tortuosos desejos dedicados a garota e pela inveja irmanada.

A paixão também acorrentava a sua carne e os sonhos de Simas. Inebriado pelo escuro pano frio e gélido da sua raça inimiga, as paixões que alimentava por Desiré eram motivos das suas saudades incessantes. Passava noites atormentadas, tomado pela saudade da criatura-menina, a palestina amedrontada diante dos soldados a caminho da escola, do sorriso exato e cruelmente cálido das carnes de sua boca.

Simas quer livrar-se do holocausto que o sacrificava e o queimava a carne prestes a render-se de toda paixão e vontade. Envolto pelas raivas de sua carne, só a morte do único irmão significava a morte também, de uma paixão inimiga e corrosiva, que o afugentava-lhe a alma da essência da qual pertencia. A dor desta morte, assim, o afasta da pureza perigosa de Desiré, o terreno das suas ilusões mais doces e assustadoras, irrigado pelos impetuosos olhos amendoados e negros.

Ele adentra o galpão e tem agora em punho o fuzil polonês do seu avô, herdado do seu pai e ainda empoeirado pelos anos no porão da casa de sua família. Aproxima-se então do irmão, em sono profundo, e o fuzila até a morte, cravando no peito as vultosas balas do fuzil da família.

O corpo imóvel de Lucas emana o sangue extirpado pela crueldade fraterna, em suas feições congeladas pela lágrima que lhe apavora a alma e arregalam-lhe os olhos frios sob a noite que começa.

Os braços de Desiré enlaçam com toda força e desespero o corpo do garoto morto e pálido. Acaricia a face morta e o corpo sem sangue, extraído pelas balas e pela fúria do ciúme inimigo.

A dor, que nasce de um choro quieto e triste expande-se pelo instante em que as lágrimas, vindas de sua face adorável e infantil misturam-se ao sangue do amado, manchando e espalhando pela sua pele exposta ao frio as últimas reminiscências do amor naqueles terrenos turbulentos, sacudindo a poeirenta e nebulosa fumaça das incompreensões humanas; ali na entrecortada e dividida cidade.

Domingo, 7 de janeiro de 2005

MJ Minos
Enviado por MJ Minos em 17/08/2008
Código do texto: T1132698
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