Madrugada

João dormia na laje fria do túmulo de qualquer pessoa. De um qualquer que parecesse ter tido mais sorte do que ele na vida, e tinha ao menos alguém que chorasse por ele em algum dia do ano. A madrugada no cemitério era mais calma e fria. Ninguém lhe incomodava nem prestava atenção - ao menos ele não via - ao seu jeito troncho de se vestir e andar. Seu capote surrado e cheio de furos fazia uma bonita sombra no chão. A luz que atravessava os buracos os faziam parecer olhos no concreto. Na verdade ele gostava mais da sombra do que do próprio capote. Podia ler Álvares de Azevedo e também Drummond. Mas ele não lia nada, a escuridão não deixava. Achava aquilo bonito. Ouviu falar que alguém o já havia feito, então apenas olhava os livros até pegar no sono, assim mesmo, apenas com a roupa do corpo e envolto em neblina. E vinha então o sonho... todas as suas graphic novel em sua cabeça naquele momento. Furacões de idéias, alucinações controladas, cores e muita música, todas ao mesmo tempo. Ele podia voar, no espaço e no tempo, vê-lo nascer, andar, primeiro dia da escola, seu falecido pai. E então voltava mais ainda: via seu bisavô quando foi para a guerra, e todo o barulho ensurdecedor da Primeira Guerra, o cheiro de sangue... voltava mais e mais: Egito antigo, sumérios, neanderthais, início da vida, ia até onde ele não podia alcançar com seu pensamento. Voltava voando acima das nebulosas e galáxias desconhecidas, e era hora de ver o futuro. Mas o futuro... ele apenas podia imaginar, e imaginava como bem queria: uma vida calma e tranqüila ao lado de uma pessoa (que ele ainda não sabia onde estava e nem quem seria).

João imaginava todos os pensamentos mortos e enterrados naquele cemitério. Quantas idéias não nascidas. Quantas palavras que não chegaram a serem ditas. Quanta vida não vivida. Quantas desculpas que não chegaram a serem dadas. Não há vida que se complete – pensava ele. Ela não se completa na morte.

Deixava o olho entreaberto e olhava mais atentamente para cada túmulo com um precioso cuidado. O mármore frio parecia encerrar um universo. Dentro de cada caixão um universo extinto. E isto lhe dava mais sono...

Acordava às 5:00 quando o vigia chegava e ele saía antes que precisasse mandar. Recolhia seu poemas e livretes. Não ligava para sua roupa suja de terra muitas vezes. Apenas assobiava e voltava para casa com uma “leve” sensação de, mais uma vez, ter vivido várias vidas num só instante.