A ROSA QUE EU PERDI
A ROSA QUE EU PERDI
* Profesor Miguel João Simão
Do alto do campanário da velha igrejinha sentada no topo do morro, o sino badalava sem cessar.
O sino era tão velho quanto a construção das paredes da igrejinha rebocadas com óleo extraído de fígados de baleias.
Lembro-me bem do dia, quando chegou na lancha do Pereirinha, deu uma trabalheira só, para tira-lo e leva-lo até a igreja. Inventaram mil maneiras para subir o morro com o sino, mas não foi fácil! Foi tão difícil quanto pendura-lo no alto, de onde badala todos os domingos chamando o povo a rezar.
A igreja foi um sonho do povo que necessitavam de um lugar para rezar.
Sua construção data de 1941, mas não é a data da pedra fundamental, que foi colocado no local bem antes, nem se sabe ao certo quanto tempo antes.
É de conhecimento do povo, que por volta de 1850, um tal de Manoel Florêncio dos Santos, juntou alguns moradores do lugar e fincou ali, um pouquinho na frente onde está a igreja hoje, uma grande cruz de madeira como sinal da fé católica. Essa cruz só foi tirada do lugar por volta de 1925, quando construíram uma igrejinha de madeira que, então, foi substituída pela de tijolos.
Todo mundo queria ver a igrejinha acabada, com janelas, com portas, com uma torre bem alta. Muitos não alcançaram, foram embora desse mundo antes da obra ficar pronta, não chegaram nem a conhecer o padre. Mas, outros tiveram até o privilégio de vestir seus primeiros ternos na inauguração, chapéus de carmuça e lenços brancos no bolso do paletó.
Para as “moças de famílias” não faltou o véu que lhes cobriam os rostos e que só eram levantados na hora de tomar a comunhão. Roupas descentes, sem decotes e as saias abaixo dos joelhos, é claro.
Teve até a banda de músicos que veio de Florianópolis, foi aquele festão!
A rua toda enfeitada com bandeirolas que se entrelaçavam nos arcos feitos de bambus.
Depois da missa, começava a domingueira no salão improvisado ao lado da igrejinha. Salão Poeira, como diziam os hilários de plantão. Uma cobertura com lonas, cercado com uns pedaços de madeira, e ali todos se divertiam.
De um lado as moças acompanhadas pelas mães, e de outro os moços que volta e meia tentavam se assanhar. As vezes dava certo para alguns, outros não estavam no seu dia de sorte, bastava um olhar de desprezo da moça desejada para perder toda vontade que tinham de dançar.
Foi em uma dessas vezes que Pedro se encheu de coragem e respondeu ao olhar fascinante da mais bela jovem que ali estava a enfeitar ainda mais a festa.
Chegou de mansinho, meio envergonhado e pediu permissão para aquela dança. Prontamente a moça aceitou, não se mostrou difícil como algumas faziam na hora que chegava um moço que não lhe agradasse e acabavam indo apenas por serem obrigadas. Naquela época era assim, em nome dos bons costumes e do respeito, a filha só entrava no salão, acompanhada pela mãe. Mulher separada não podia dançar e nem se misturar com as outras mulheres de família. E a moça que negasse a dançar com um moço, era convidada a se retirar do salão.
Começaram a dançar. Os olhares se atentaram a eles, centro de atenção por criarem um momento de raro esplendor. Formou um belo casal aos olhos dos mais velhos que ali estavam e deu inveja nos mais jovens.
Ele era nativo da pacata vila de pescadores denominada Canto dos Ganchos, localidade pertencente ao Distrito de Ganchos, que pertencia ao Município de Biguaçu, e que só foi emancipado em 1963, passando a se chamar Governador Celso Ramos em 1967. Descendia de uma mistura de alemães com portugueses. Alemães por parte do pai e portugueses puro por parte da mãe. O moço moreno claro, de olhos meio esverdeados trazia bem os traços das duas raças. Alto, de bela presença, chamava a atenção por onde passava. Foi educado sobre olhares vigilantes e disciplinadores do pai e da mãe, que não davam moleza para filhos fazerem o que quisessem. Esses predicados somados à vontade e o capricho na hora do trabalho lhe destacavam entre outros moços de sua época.
Acompanhava o pai nos trabalhos de carpintaria e se tornou bom profissional, um dos mais procurados na região. Não dava mole para o serviço, parecendo que nunca se cansava de trabalhar.
Ela chamava-se Rosa, uma rosa pura e bela que chamava a atenção por onde passava por sua beleza ímpar. Seus avós paternos eram alemães, que chegaram em Tijucas no finalzinho do século XIX. Os avós maternos foram desbravadores italianos que ajudaram a construir a colonização italiana em Santa Catarina. Chegaram em meados do século XIX, em Nova Trento.
Loira pura de cabelos amarelinhos e de olhos azuis, lindos como o céu clareado sem nuvens, era percebida sempre por onde passava. Sua simpatia, seu carisma eram qualidades admiradas por todos que lhes conheciam.
Essa dança foi o primeiro contato que ela teve com um moço desconhecido, por isso tão marcante para sua vida. Era a primeira vez que saia só, sem a companhia dos pais.
Natural da cidade vizinha de Tijucas, conhecia a vila de Ganchos apenas de nome. A imagem que desenhava em sua memória sobre o lugar, era de um povoado com poucos casarios, adormecido entre os morros e que se pode num olhar longínquo avistar a vizinha cidade de Tijucas, que é separada apenas pelas águas do Atlântico.
Mal terminava essa dança e o músico já comunicava a dança da gasosa, um costume da época que, muitas vezes, esvaziava o salão e que permaneciam apenas os poucos sortudos.
A dança da gasosa era uma espécie de brincadeira que acontecia em todos os bailes, onde as moças eram quem convidavam os moços a dançar, e como uma maneira generosa de retribuir o convite, o moço pagava um refrigerante (uma gasosa) para a moça. Nesse momento, ficavam todos de orelhas bem em pé, pois os convidados geralmente eram seus futuros pretendentes ao namoro. As moças só convidavam mesmo para dançar, quem elas tinham interesses futuros e não para ganhar uma gasosa.
Rosa dirigiu seu olhar encantador para Pedro. As expressões no rosto, o sorriso singelo já dizia tudo, era o convite para dançar.
Na primeira dança nem uma palavra, mas na dança da gasosa já estavam mais soltos, mais a vontade, e puderam trocar algumas palavras que marcariam aquele momento como único, sagrado para o jovem casal.
Final de tarde! Algumas estrelas começam a pintar o céu, que vai perdendo o azul irradiante pelo tom escuro da noite que se aproxima. A domingueira termina, as moças dirigem-se as suas casas, apenas os rapazes ficam ainda por mais tempo trocando idéias, fazendo comentários da festa, dando boas gargalhadas.
Rosa vai acompanhada da tia e da prima, mesmo assim ainda consegue deixar algumas palavras de despedida a Pedro, visto que partiria cedo no dia seguinte.
Na manhã de inverno, daquele 30 de junho, agasalhada com um casaco que lhe protegia do frio, ela se despede dos parentes e embarca na lancha que a levaria até Tijucas.
Ficou na terra recém conhecida a marca sublime da primeira paixão, ficou ali o homem que lhe conquistou com gestos, com palavras. Não trocaram nem um beijo, mesmo porque não ousariam se encorajarem a tanto e quebrar uma norma tão rígida. Se houvesse um beijo, um abraço forte que alguém visse, a moça ficaria mal-falada e o moço seria punido, na maioria das vezes, obrigavam-lhes a casar. Mas sentiram suas mãos suarem no aperto das mãos a cada passo da dança. Enamoraram, se atreveram em deixar que seus olhares fossem olhados por outros. Não ousaram em ultrapassar os limites impostos pela sociedade, mas não esconderam a vontade de ficarem juntos,
Quando chegou em casa, não levou muitas novidades, o pai já sabia da festa, das companhias e até da dança.
O pai de Rosa era um homem duro, incompreensível, áspero. Era do tipo que achava que um bom pretendente para a filha tinha que ser dali dos arredores, gente de família conhecida, menino que ele viu nascer e crescer, nada de gente de fora. Dizia que paixão é igual fogo de palha, logo se apaga. Um bom casamento não precisa ter paixão, amor, essas coisas tiradas da cabeça de gente nova. Um bom casamento se fazia com obediência. Mulher obediente e trabalhadeira tem futuro, pega bom casamento. A moça tem que ser prendada, saber cozinhar bem para agradar o marido, usar bem o ferro de passar para não amarrotar a roupa, deixando-a bem passada. Coisas que as moças eram obrigadas a aprender com as mães, para a família não passar vergonha quando a filha casasse. Uma moça que não soubesse fazer as atividades domésticas, se viesse a casar, envergonharia a família inteira, pois os comentários seriam passados a frente, e todo mundo acabava sabendo.
Por mais que Rosa, com a ajuda da compreensiva mãe, tentasse explicar que tinha sido apenas uma dança, o homem não queria entender. Para tanto, tratou logo de arrumar um casamento para a filha. O moço em questão era de família tradicional de Tijucas e há muito tempo se interessava por Rosa.
No pacato vilarejo de Ganchos, Pedro continuava suas atividades profissionais ao lado do pai. Em suas horas de solidão, buscava no amigo violão o antídoto para suas dores de cotovelos. Cantava, inventava canções, declamava poesia, vivia um sonho acordado.
Era um incansável lutador pelo sonho que desenhou ao lado de Rosa. Sempre que ia alguém de confiança para Tijucas, mandava uma carta. As viagens à Tijucas eram comuns na época e aconteciam quase todos os dias. Sempre ia alguém para Tijucas, fazer compras, buscar remédios nas benzedeiras, vender crivos, enfim, sempre alguém tinha alguma coisa para fazer em Tijucas, visto ser uma cidade desenvolvida, com muitos recursos por aqui inexistentes.
Em todas as cartas recebidas por Rosa vinha a certeza do amor de Pedro. Mas, seu coração partia de dor em imaginar que já era comprometida, mesmo contra-gosto, mas por força de seu pai. Pedro sabia das atitudes do pai de Rosa, mas a cada casa, a cada barco que terminava de construir, guardava o dinheiro, moeda sobre moedas, pois haveria de surpreender a família de Rosa. Era uma promessa feita para si mesmo, economizar, e quando tivesse um montante suficiente iria à Tijucas e fugiria com a moça.
Namorou Rosa quase um ano por carta e se encontraram depois daquela inesquecível domingueira apenas duas vezes, tempo suficiente para jurarem amor eterno.
O primeiro encontro aconteceu em Tijucas, a beira do rio, onde Rosa lavava roupas. Foi rápido, tempo suficiente para trocarem algumas palavras. Ali nada de exageros, pois, era um local aberto e passavam muitas pessoas. Conversaram rapidamente, trocaram poucas palavras e apenas deram como despedida um forte abraço. E ele como verdadeiro apaixonado deixava de lembrança uma linda rosa vermelha que colhera pelo caminho.
A segunda vez que se encontraram, foi como se o destino preparasse a despedida de ambos. Era um sábado qualquer. Sem ter o que fazer naquela tarde, Pedro estava em casa descansando, quando é convidado por seu pai a visitar alguns amigos em Tijucas. Prepararam a embarcação e se foram, mar a dentro. Chegando lá, na casa de Manuel, um dos amigos da família de Pedro, o jovem avista Rosa, que caminhava solitária na rua á beira rio.
Pedro deixou seu pai com o amigo e correu ao encontro de Rosa. A moça que escuta o chamado de Pedro, resolve esperá-lo debaixo de uma velha figueira plantada a mais de cem anos, debruçada sobre o rio Tijucas, fazendo sombra aos velhos pescadores que, do gigante de águas claras, tiram seu sustento.
O fogo ardente da paixão dominou o local, os olhares se cruzaram e suas bocas se beijaram. Parecia um sonho que estavam vivendo, e que preferiam não acordar nunca. Rosa conta a Pedro do namoro obrigado que seu pai a fez aceitar, e ele promete que em breve, muito breve haveria de arrumar uma solução para o caso.
Aqueles momentos que viveram juntos, aqueles minutos marcados na vida de Rosa, lhes apertavam mais o coração. Pedro fora embora, lhe prometeu que viria busca-la e não o fez. Comentários de “boca pequena” diziam que Pedro já havia lhe esquecido, e quando ela imaginava isso, sentia uma dor horrível no peito que lhe sufocava a alma. Rosa imaginava que Pedro o enganara, que havia lhe esquecido, que tudo o que viveram fora para ele, uma brincadeira. De outro lado, o pai de Rosa insistia em apressar mais o casamento. Ver a filha casada com o pretendente que ele escolheu, já era uma questão de honra.
Enquanto isso, Pedro trabalhava incansavelmente e não via a hora de buscar Rosa, pois já fazia algum tempo que ele não recebia notícias dela. As costumeiras cartas já não lhe eram respondidas e, depois do último encontro, ele recebeu apenas uma carta sua, que suplicando ela dizia que o casamento, logo seria marcado.
No sábado, depois da Páscoa, do ano seguinte, com uma quantia de dinheiro que era suficiente para assumir tamanho compromisso, o de tirar uma moça de família de casa de seus pais e dá-lhe o conforto necessário, Pedro se preparou para buscar Rosa.
Acordou feliz! Como se tivesse achado ouro enterrado. Ele foi buscar um terno que mandou o alfaiate fazer, engraxou seus sapatos e tratou com um dono de embarcação a hora da surpresa. Quer dizer, surpresa para a família de Rosa, porque em Ganchos todos sabiam que Pedro iria se casar, iria buscar a sua amada para viverem juntos para sempre. Ali não era segredo para ninguém, todos comentavam em todos os lugares, desde as fontes onde as mulheres lavavam roupas até nas salgas, onde trabalhavam na limpeza dos peixes.
Eram três horas da tarde, horário em que o dono da embarcação desce a lancha para o mar. Na praia, familiares e amigos de Pedro se faziam presentes. Todos torcendo pelo bom jovem, que era querido por todos na terra.
Mar calmo! E lá se vão os homens, remando rumo à Tijucas.
Na entrada da barra já se avista as casas e a Igreja de São Sebastião. Foram eles se aproximando e vendo a presença de pessoas que se dirigiam para a igreja. Pessoas bem arrumadas, carroças e charretes enfeitadas e cheiro de festa no ar. Pedro, os dois remadores e o dono da embarcação atracam a canoa no Porto e desceram. Eles sabiam que naquela data não havia comemoração alguma na igreja, e para um sábado comum só podia ser festa de casamento.
A curiosidade de Pedro instigou-lhe a perguntar uma senhora, qual era a festa que tinha na cidade. A senhora que também se dirigia à igreja, sorrindo, calmamente falou:
- É o casamento da Rosa, filha do seu Antônio, com Geraldo, o filho do fazendeiro.
Os remadores e o dono da embarcação baixaram a cabeça e só as levantaram quando os sinos da igreja anunciavam a entrada da noiva. Ficaram estáticos, nem os olhos se mexiam, esperando a reação de Pedro que teve seu olhar transformado em dor, solitário, aprisionado. Lágrimas lhes caiam do rosto, mas manteve a postura de um homem educado, nem uma palavra falou, apenas pasmo ficou.
Não acreditou no que aquela mulher havia falado, preferiu ele mesmo confirmar com seus próprios olhos.
Deixou todas as pessoas entrarem na igreja, e quando os noivos se aproximam do altar, ele chega de mansinho a porta da igreja. Olha as pessoas, a igreja, dirige seu olhar em direção aos noivos.
Peito rasgado, não conseguia imaginar Rosa nos braços de outro, para viver como manda os mandamentos de Deus. Casar para a vida toda, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. Queria uma explicação plausível para o caso, queria saber se Rosa havia deixado de lhe amar. Saiu da porta da igreja da mesma maneira que ali chegou, e preferiu esperar o casamento terminar próximo a embarcação.Gostaria de poder olhar nos olhos de Rosa, mesmo que fosse pela última vez.
Quase uma hora depois, saia da igreja a noiva de braços dados com o noivo. Ela não o percebeu. Soube, muitos anos depois por uma amiga, que Pedro tinha ido lhe buscar, bem no dia de seu casamento.
Ele pode apreciar sua beleza, mesmo de longe, lá da barranca do rio, viu pela última vez sua amada, como desejou um dia vê-la, vestida de noiva.
Ordenou aos homens que dessem a volta na lancha e dando seu último olhar em direção a igreja, com os olhos marejados de lágrimas, disse: Lá se foi a Rosa que eu perdi.....