Moscas e Aranhas
“¡Viva el mariscal López!; Viva el Paraguai!; ¡Independencia o muerte!”, gritara o soldado inimigo fazendo pátria, cinco segundos antes de abrir com um golpe de sua lança a barriga do camarada teutônico a seu lado, tombando de joelhos e amparando as tripas que do talho borbotavam envoltas em jorros de sangue, arquejando menos de dor que surpresa, observando espantado as entranhas que carregara toda sua vida, expostas dessa maneira obscena. Vendo o aturdido companheiro remexendo em seus intestinos como a impedir a alma se esvair no vapor de cada arfar, mesmo tenso e nauseado pode vislumbrar através da névoa de terra e fumaça de pólvora, e vindo em seu encalço, a silhueta do mesmo soldado paraguaio que dera o golpe mortal no alemão agora estatelado a seus pés; sem afobação, segurando o revólver, fez mira e disparou: O projétil perfurou a fronte do soldado inimigo acima dos olhos esbugalhados de incredulidade, que o fitaram com estrábica censura por um instante, desabando junto com o corpo. A pouca distância, outro combatente, observando o acontecimento a seu camarada, assanhado de fúria, lançou-se sobre ele aos berros expondo-se para a mira certeira de um segundo disparo; alvejado no peito à queima-roupa e sem conseguir deter seu avanço, o soldado atropelou-o tombando seu peso moribundo e arrastando-o com ele ao chão; cegado momentaneamente pelo sangue brotando do peito morto, ficou ali resguardado e quieto sob o corpo que fedia a montaria e suor; enquanto restituía o fôlego, observou o número de soldados inimigos aumentarem ao seu redor; num lampejo reparou que a impressão, em verdade, era provocada pela diminuição dos combatentes da sua fileira e entendeu a batalha perdida. E chegada a hora de sair dela. Tirando vantagem da confusão imperante, de um safanão, afastou o cadáver que começara a sufocá-lo e correu enraivado em direção à retaguarda; seu cavalo amarrado e oculto entre determinadas árvores, estaria lhe esperando. Acossado por paraguaios armados de lanças, machados e sabres, acelerou a corrida e, deflagrando as últimas balas de seu colt, abateu os mais expostos na vanguarda da caterva; tropeçando em monturo de corpos, apartando os braços no cipoal implorante, porém, surdo aos gemidos dos feridos, continuou a correr até ultrapassar a fenda da trincheira de onde tinha saído, e dando um salto emaranhou-se num labirinto de cipós e touceiras; driblando mato rasteiro e árvores, só parou diante de seu tordilho, preso às rédeas enlaçadas a uma árvore, que se mostrava indócil na espera. Ganhara a corrida dos inimigos mas por minguados metros, entretanto, na sanha da persecução, prosseguiam nas suas pegadas; montou na cavalgadura num pinote; ao reconhecer o cavaleiro no lombo, o animal deu um relincho e levantou-se escorado nas patas traseiras, ameaçando com as dianteiras o soldado que se postara à sua frente de lança em punho, cutucando-o com a ponta aguçada prestes a lanceá-lo; o animal rodopiou sobre as patas traseiras e encurtou a disputa com o coice que tirou o paraguaio do páreo, dando tempo de o cavaleiro comandar as rédeas para o recuo e, com as esporas, ordenar galope na retirada. Prosseguiu na escapada por veredas agrestes e desconhecidas até perder-se dos inimigos; enquanto continuava a galopada sem trégua, súbita escuridão cobriu a tarde e uma sequência de relâmpagos que apavoraram o cavalo, anunciou chuvada que, sem tardar, caiu torrencial; nauseado dos odores da batalha impregnados em suas roupas, ofuscado pela chuva e no limite da fadiga, o homem derribou da montaria, no entanto, suspenso por um dos pés prendido ao arreio, permaneceu pendurado no flanco da besta. Sem reparar do incidente, infrene e aterrorizado, o animal continuava arrastando-o na sua carreira desembestada; com os cascos a lhe roçar o rosto ensanguentado, esmurrava-o nas touceiras e nos pedregulhos do caminho aspérrimo. Mesmo com o corpo enviesado, o homem pode ver que o lanceiro escoiceado ferira uma das patas do animal, agravando-se à medida que o esforço o exigia. Quase cego e apavorado, em seguida a várias tentativas, trapaceando a morte certa, conseguiu livrar-se do arreio que o atrelava à cavalgadura e rolou pelo campo, afastando-se da ameaça; ao cessar de rodar, levantou-se e sentiu na perna a mesma dor que adivinhou, numa compaixão fraternal, seu cavalo estaria sofrendo. O afobado animal, carregando a própria ferida que agravara seu manquejar, mastigando o freio, espuma de suor a lhe cobrir os beiços arfantes, prosseguia a galopeada sem reparar da ausência do cavaleiro; ensurdecido pelo estrondear do céu que alimentava seu pavor e cego pela chuva intermitente, diante do cimo escarpado que aparecera repentinamente à sua frente, emitiu um relincho selvagem como rugido e mergulhou no abismo: garboso Pégaso no esplendor do relâmpago.
O homem estava perto o bastante para assistir a cena e lembrar mais desse episódio, que das tripas moribundas do companheiro teutônico.
________________________
(Capítulo extraído do romance: "Moscas e Aranhas de guerra", em fase de acabamento)