maio

Berto sentiu-se desolado. Estremeceu todo o corpo, a voz, os pensamentos. Recuou alguns passos olhando o fundo negro da piscina e saltou, num movimento áspero e libertador.

Demorou o que havia tomado de fôlego, mas enquanto ainda sentia a gélida água perfurar os pulmões, deteve-se em ficar mais um pouco.

Olhos abertos, pupilas dilatadas em consequência da escuridão penetrante, conseguia ainda, depois de tudo, deixar de sentir-se nauseado. Queria mesmo, encharcar os pulmões, deixá-los alagados como os olhos naquele momento. Mas em súbito entusiasmo, subiu desesperadamente a procura de ar.

— Quase encontrei o sentido. — Sussurrou exausto.

Data-se todas as suas tentativas. Primitiva solução. E viu no ar toda fonte de vida. Abstrato como o cheiro. Como a luz de um flash fotográfico. Exausto. Mas depois submerso. Limitava-se a mais uma tentativa, pensara. Se vê nada debaixo d’água. Enjaula-se água como qualquer coisa: uma piscina. Sina de todos.

Berto: era esse o seu nome. Soa como qualquer outro. Some no ar. Fone e endereço pra quem quiser ligar e aparecer. Ser mais um na sua vida. Primitiva promiscuidade. E vê na forma a alma das coisas. Idade perpétua e única. E de todas as dúvidas, alguma restara como perversa. Cerca você como a uma ilha. Empilha-se todas as tentativas: morrer e não morrer. E agem como forças antagônicas. E são. Quase antônimas.

É difícil traçar algum perfil. Em Berto tinha sempre algo de misterioso. Curioso era o seu sumiço durante o mês de Maio. Atalho nenhum levava a qualquer conclusão. Era em vão perguntar, mas todos perguntavam. E sempre respostas meia-substâncias. Vivia como qualquer um. D’um sutil exagero. Diga qualquer coisa contra seus atos e ele nem percebe que disse alguma palavra. Sábio ou inocente ou culpado demais para contestar argumentos. Não se sentia o centro de tudo. Vivia como qualquer um. Sem brilho. Sem trilhos que guiem qualquer trem. Sem isso era mais fácil viver. Ter sob controle a ansiedade. "idade confusa" denominava. Dava de si o tudo. E esse tudo não era restrito. Era como grito. E qualquer grito é amplidão. Céu nebuloso e quase sem fim. Se sente qualquer coisa como náusea, às vezes. Centenas delas. Feras à solta. Pouca distinção moral. Tal razão revolta. Distorce as soluções. Sons e drogas. Tocas intocáveis. Tardes intermináveis: era assim a sua vida. Qualquer hora volta a tentar. Será mais uma. D’uma persistência incalculável. Tentativa invariável. Instável em deixar razões. Pouco inútil e fútil demais nas relações. Sexo. Sede. Verde, todos os carros. Vários, mas verdes. Reação congênita em tudo que era. Espera qualquer telefone. Alguém pudera chegar e tecer dele qualquer gozo. Homem ou mulher, é mais prático que escolher. Ser hétero. Ereto e viril. A mil por hora. E chora depois.

Não é tristeza o que sente. Mente pra todo mundo. No fundo nem sente o choro chegar. Molhar o rosto. Gosto de sal quando chega à boca. Toda a demora implora por ele. E sente sede submerso. Esvazia-se de ar. Borbulha a água negra. Espreita qualquer claridade. Invade a boca, a água. Toma conta de todo o espaço. Um laço aquático. Prático é viver só. Forma-se vínculo com o material. Com o sal da lágrima. Com a água da piscina. Com dez segundos a mais sem um pouco de ar. Submergiu algumas vezes. Depois subiu. Abriu os olhos e olhou pro céu. Véu de estrelas feitas de tão luzes de ilusão óptica. Lógica astronômica.

Senta na borda. Arremessa a botina. Submerge. E não retorna. Podia ser assim, como ela. Dela tem-se lembranças. Tantas vezes calçara o pé. E levantou com a outra na mão.

Conta a grana na carteira: quatrocentos e cinquenta e oito reais. “Algum dinheiro no bolso”, pensa. Tenta não abrir a geladeira e comer mais um pouco a torta de avelã e nozes. Vozes cercam cada lado do ouvido. Uma, diz que sim, outra, diz que não. Mas ele não segue nenhuma. Esquece a torta. Abre a porta do quarto. Se vê no espelho. Molhado. Botina na mão. Larga a botina. Faz algum barulho. Pega um cigarro. Acende. Traga duas vezes e apaga. Olha no espelho o corpo definido. “Narciso morreu”, pensara. — E eu estou aqui. Bonito. Gostoso. Sadio. Viril. Louco por você. Todos sabem disso. — Ouve alguma música. Rústicas luzes, móveis por toda a casa. Quase horas e meia. Uma voz melancólica na música. Susan, Roberto, Érico, Cíntia, Clara, Eduardo, Paulo, Cláudio, Abelardo, Lara, Rodrigo e o primo Tito nas fotografias no mural sobre a cama. Desmonta-se sentidos naquele mural. Festas, reuniões, viagens, paisagens à toa. Soa a música. Distinta. Qualquer outra. Pouca luz. Põe uma roupa. Algum sapato. Marrom. Desliga o som. Decide sair. Quebrar rotina no mês de Maio. “Hoje são quinze”, pensa. “Algum deslize?” Já era tarde da noite. Sorte em qualquer parte. Algum carro espaçoso para muita gente. Sente a madrugada na pele: “será quente. Alguns caras. Duas marias. Faço a noite.” E agora Maio mudou em alguma coisa.

Acabou. Apagou a luminária. Olhou o céu nublado. Sentado. Esfomeado. Sinte na boca só o gosto de chocolate. Desliga o som. Liga a TV. Vai comer alguma coisa. O que tiver. E parece querer chover. Sinte a brisa fresca entrar. Roupas no varal. Chão limpo. Quer um banho. Um amor ali: beijar, sorrir, conversar, ler qualquer frase. Abraça à beça o que resta. E o que? Cessa qualquer pressa de ir embora.

Quaresma
Enviado por Quaresma em 17/02/2006
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