Mistérios do Flamenco
Seguia atentamente cada gesto daquela dançarina de Flamenco. Sua entrada em palco foi fulgurante.
Mal os primeiros acordes da guitarra flamenca ecoavam na taberna, ela adentra o palco, sob palmas harmônicas e entusiásticas dos integrantes do grupo. Os tamancos ritmados e compassados marcavam
fortemente sua presença, e os gritos dos cantores pareciam que à ensandeciam.
As mãos simétricas pareciam folhas de coqueiro ao sabor do vento. Seu rosto compenetrado irradiava mistério. Parecia concentrada na dança, e ao mesmo tempo com um olhar vago e distante. Via nos seus
olhos por detrás da forte maquiagem negra, um opaco difícil de definir.
Ela passeava-se como uma Deusa, com uma segurança envolvente. A platéia estava totalmente absorvida.
Olhava para os lados e via se eles sentiam o mesmo que sentia. Estavam imóveis e estáticos, tal como eu, rendidos com o encanto hipnótico daquela mulher.
Os músicos pareciam também entregues, e tocavam e batiam palmas como se ela detivesse o poder de não os fazer parar. Quando os acordes eram desafiadores, marcava o ritmo com os tamancos, sacudindo as saias rendadas vermelhas, com firmes tamancadas. Mas com um erotismo e volúpia desconcertantes e dureza de um exército. E as mãos femininas leves e sensuais como de uma dançarina polinésia.
O olhar, esse permanecia distante e autoritário, e fazia-nos viajar no seu oculto enigma.
Naqueles 5 minutos de apresentação, um turbilhão de pensamentos inebriantes fustigavam a minha mente.
Ao fim de sua apresentação, uma multidão enlouquecida aplaude ruidosamente, sob seu olhar carregado de segredos.
Passados uns 40 minutos, depois de seu show, ela passa em minha mesa e não resisto em lhe dizer o quão bom fora o seu espetáculo.
- Desculpe, mas não resisti em lhe dizer pessoalmente o quanto você me vez valer a noite. Sua apresentação foi desconcertantemente inesquecível.
Ao elogiá-la, meus olhos fitavam-na como se quisesse descortinar segredos.
Ela observou-me, com seu olhos atordoantes, invadindo sem pedir licença.
-O que mais gostou do meu show ?
- Tudo! respondi - Mas principalmente o seu olhar impenetrantemente sedutor.
Ela senta-se e pede que lhe sirva um pouco de Uísque. Sirvo-lhe e sob a luz de velas da mesa, ela dá um gole e olha-me de uma forma tão intensa que eu só queria desviar o olhar. Parecia que estava despudorando minha alma. Mas não consegui. Dou um gole firme fitando o copo e volto a olhá-la. Desta vez mirando-a com convicção.E lhe pergunto:
- O que estava pensando enquanto dançava ?
- Gosta de observar por dentro, não gosta !?
- Sim, gosto. - respondi - Os mistérios me seduzem.
- E o que via nos meus olhos ?
- Sinceramente, era o que eu mais gostava de saber, enquanto via você dançando.
- Qual é o seu nome ?
- Luis. E o seu ?
- Carmen.
- Pois bem Luis, pensava o quanto sou infeliz. Venho de um casamento desfeito pelos ciúmes. Para mim a dança é tudo. A dança para mim é indissociável de minha existência. Separei-me por amor a ela.
- E você o amava ? - pergunto.
- Não Luis, nunca o amei. Só agora é que me dou conta do que a vida nos relega.
- Mas porque casou-se então ?
- Casei-me porque temia que a dança não me sustentasse. Ele era rico, entende ?
- Sim, entendo. Mas se ele tinha ciúme é porque te amava. Queria ter a sorte que teve.
- Luis, temo que jamais vá me apaixonar por alguém. Amo minha liberdade, mas não consigo viver sem o amor.
- Mas quer a liberdade para amar não é mesmo Carmen !?
Ao proferir minha pergunta ela observa melancolicamente para a vela da mesa e uma lágrima escorre-lhe da face. Ao voltar a me olhar, seus olhos mudam e brilham como a de uma menina.
- É Difícil apagar a chama do amor, não é mesmo amigo ?
- É Carmen...entendo a sua perda. Ele te amava demais e você nunca soube dar o devido valor a isso, não é mesmo?
- Sim. Estou extremamente carente. Sinto-me só e desamparada neste momento.
- Carmen. Você pode ter os homens que quiser e você sabe disso!
- Sempre soube. Você não faz idéia dos galenteios que recebo depois das minhas apresentações. Mas me diga, que vai fazer amanhã Luis !?
- Não sei. - respondo.
- Não quer ir amanhã ao vernisage de uma amiga que vai expor suas esculturas numa exposição, Tenho um convite sobrando !?
Olhei fundo nos olhos dela por alguns segundos e lhe respondo:
- Não Carmen. Ambos somos reféns do amor. Mas você é dependente do sentimento, e eu da afeição. Sua liberdade limita sua vida, pois sua busca será eterna. Sua liberdade é uma clausura do transitório ao eterno. Enquanto houver amor em mim, serei cárcere dos meus sonhos. Quisera eu ser amado como você foi, para perder a liberdade de sonhar. Minha liberdade atingiria outra dimensão. A si, sua liberdade permuta numa louca transposição de sentimentos. O amor é eterno e eterno será seu desejo. Meu amor difere do seu, pois é um desejo eterno de ser amado. Viva eternamente sua liberdade e apegue-se a esse sonho. Eu vou viver o sonho de um amor por uma eternidade...
Apago a vela da mesa e despeço-me dela, jurando para mim mesmo tão cedo não voltar a assistir uma apresentação de flamenco.