O PESSEGUEIRO DE ARAGUAÍNA

Araguaína conhece este mistério: existe na cidade um Pessegueiro visto por corações verdadeiramente limpos. Acredite: deparei-me com ele em três ocasiões.

Quando tinha meus quinze anos, deu-se o primeiro encontro. Se havia um lugar mágico, um caminho destes repletos de encantos, de transcendências, era o que me conduzia ao ribeirão Jacuba. Morava na esquina da Sadoc Correia com a Cônego João Lima, bem no centro. Descalço, sem camisa, sempre vestindo calção azul, quase todos os dias, fazia minha peregrinação. Às vezes, ziguezagueava ora pela margem esquerda da estrada, ora pela direita, sentindo no corpo as marcas do cerrado. Próximo ao riacho Raizal, salvo engano, por volta das quinze horas, eis o inacreditável. A coisa foi rápida, nunca sairá de minha memória. Guardo bem que por sobre a copa do Pessegueiro havia uma enorme inscrição com uns dizeres, é verdade, místicos demais: “Pertenço ao infinito, sou Yi-o-Arqueiro”. Sem explicações, ao procurar divisar aquela imagem, surge um burrico relinchando, assusta-me, é claro, desviando minha atenção. Quando retomo o olhar para o Pessegueiro, surpresa, sumira sem deixar vestígio. Sobressaltado, saio em disparada rumo à Vila Aliança. Temendo ser tido como um maluco, nunca contei o ocorrido a quem quer que seja.

O segundo, numa outra ponta da cidade, precisamente no pátio de minha primeira escola – Alfredo Nasser -, alguns anos depois do Raizal. Era um domingão ensolarado. A cidade, meio lerda, iniciava a ressaca própria das férias julhinas. Entre duas velhas mangueiras, lá estava, novamente, o Pessegueiro. Manifestava-se mais extraordinário, mais belo, mais espetacular. Martins Fonseca, antigo e simpático guarda do colégio, me reconheceu, falou algo que não entendi direito, mas não enxergava o que meus olhos contemplavam. Olhava, hipnotizado, para a mensagem que aparecia no lado esquerdo do tronco: “Portal da Imortalidade, eu sou Ling-Yun”. De repente, como da primeira vez, algo me distraiu. Era uma cascavel pronta para o bote. Apavorado, corri até a fábrica de sabão dos Boa Sorte. De lá, tentei ver o Pessegueiro, que nada, desapareceu totalmente. Prossegui guardando silêncio.

O terceiro e último encontro, ocorreu há pouco tempo. Era dia do professor. Como de costume, cheguei cedo ao campus da Unitins, no qual trabalho. Por decisão da reitoria, as aulas foram suspensas. Notei que o portão principal estava meio aberto, resolvi entrar. Talvez por hábito, fui direto à Faculdade de História, antes mesmo de entrar numa sala, atrás do prédio da biblioteca, eis, imponente, o Pessegueiro. Senti, confesso, uma espécie de comichão na espinha. Não me abateu tanto medo como das outras vezes, afinal, não sou mais um adolescente, acredito ter evoluído alguma coisinha. Enfitei-o corajoso. Aos poucos, notei, suas flores iam ficando azuladas. Vieram-me à mente o significado da cor azul. Não deu outra, busquei a copa e lá estava mais uma mensagem: “Sou Wank Tchau, alimento-me das flores deste Pessegueiro”. Intrigado, pensei: que diabo isto quer dizer? Conheço a lenda de Ling-yun para quem a visão das flores desta árvore lhe trouxe uma iluminação.

Depois de uns cinco minutos observando atentamente aquele fenômeno, sou incapaz de explicar como, uma flor é atirada aos meus pés. Seu aroma era inefável. Num dos lados, estava uma frase, meio invertida, de Victor Hugo: “Toda planta é uma lâmpada, o perfume é da luz”. Ao me abaixar para apanhá-la, antes que a tocasse, se desfez numa espécie de pergaminho contendo a mensagem seguinte: “Bons combates são os que travamos à procura da maturidade. Só uma longa evolução do ser nos fará chegar até ela. O que vemos, normalmente, são adultos aferrados às suas próprias pessoas fazendo de tudo para que seus interesses sejam preservados. É gente susceptível, profundamente vaidosa e portadora de um tipo de obstinação que beira ao patológico. É preciso força, é preciso coragem, é preciso sagacidade para mantermos nossos olhos no cérebro e jamais nos desvarios tantas vezes encapotados dos sentidos. Alguns andam em desatinos, “trabalham para o vento”, outros vivem atrás dele. Outros se arrastam instáveis, inconstantes e frívolos. Há, por acaso, pior emprego do tempo que esse? Qual o saldo? Dor, angústia e sofrimento.

Sábios são aqueles que evitam cair nesse labirinto ou que põem fim a tão estúpida forma de vida. Sábios são aqueles que estabelecem estratégias inteligentes de aproveitamento do que lhes resta para viver.

Bem-aventurados os que mergulham fundo nos mistérios aparentemente insondáveis da existência. São eles que possibilitam enxergar o extraordinário da vida, aquilo que se encontra para além dos “movimentos” (agitações vãs) e nos ajudam na superação do banal, da rotina, da mediocridade.

A propósito, longe da Verdade, o que somos? Um ridículo amontoado humano de “vaidade, fumo, vento, sombra, nada”. De modo que o maior bem da vida é a morte. A sabedoria maior consiste em “morrermos” antes de morrermos. O genuíno amadurecimento outra coisa não é senão a arte de morrer. Quando a fé crê na Imortalidade, a própria morte está vencida. Que esperança! Que consolo! Que paradoxo da Graça!

Mal terminei a leitura, sobreveio um forte estrondo como se fosse um trovão. A terra se abriu e o Pessegueiro desapareceu. Apreensivo, me dirigi até o local onde ele estava e sequer um sinal havia ficado. Um dos guardas, parente meu, surgiu assustado querendo saber do que se tratava, também ouvira o barulho. Não sabia como explicar tudo aquilo. Apenas repetia que o Pessegueiro estava exatamente ali. Acabei sendo internado na única clínica para loucos da cidade. Foram meses em que o mundo me pareceu às avessas. Aproveitei e, às escondidas, reli “O Elogio da Loucura”, de Erasmo de Rotterdam.