"A responsabilidade"
-Não enche! O grito do jovem ressoou pelas paredes. Ele bateu a porta dos fundos e saiu em direção à garagem. "Droga, ninguém me entende". Entrou em seu carro e engatou a marcha com violência. O arranque que ele deu não o acalmou. Estava exausto das cobranças e sermões dela. Ia mandar tudo às favas. A luz solar feriu-lhe os olhos e soltou um palavrão. Acelerou o veículo e aumentou o som.
Dentro de casa, de repente, a mão da mãe parou o ferro no ar porque começara a lembrar-se da criança que gerara com amor, há 17 anos, numa gravidez arriscada. Criara o filho com o zelo possível devido às circunstâncias.
Nossa, como o tempo passara rápido e ele crescera depressa! Mesmo com alguma dificuldade, o filho tivera o que as crianças de qualquer época deveriam ter: bola... pipas... bicicleta ... cão... carrinho de rolimã... uma árvore grande... amigos... pião... a escola estadual. E agora havia o cursinho e aquele carro que o pai lhe dera à sua revelia - puro desencargo de consciência já que ele se fora quando o garoto estava com 12 anos - essa idade tão difícil - para formar uma nova família onde esse filho não tinha espaço nem vez.
A rebeldia chegara aos poucos e quando a mãe se dera conta, ela já estava fortemente instalada no adolescente. O aproveitamento escolar diminuindo, as malcriações aumentando, as mentiras se tornando rotineiras, a companhia de uma turminha meio baixo-astral, as noites que se alongavam pela madrugada e aquele jeito dele, parecendo meio lento, meio fora do prumo. Ela já encontrara restos de cigarro no chão e percebia algumas coisas começando a sumir de casa.
Em que estaria errando, recriminou-se chateada demais... e de quem era a responsabilidade por isso estar acontecendo ao filho querido? Não sabia o que fazer, com quem se aconselhar. Já comentara com o pai, mas ele ainda não tivera um tempo para conversar com o menino. De outro lado, a família dela também estava sempre ocupada. Sentia-se muito só e inadaptada ao excesso de modernismo que presenciava. Que complicado era cuidar de tudo e conciliar isso com a educação dos filhos em tempos de muita informação e de intensos distanciamentos afetivos!
Assim meditando, nem viu o tempo passando até que se assustou quando a porta foi aberta violentamente e o jovem correu para ela transtornado:
"Me esconde, mãe, ele falou rápida e confusamente: Eu atropelei ela... foi sem querer... foi culpa sua! Você discutiu comigo e fiquei nervoso... tive que fugir... eu acho que ela não morreu... só ficou caída no chão... mas não foi minha culpa."
Ela sentiu-lhe o hálito forte e quase nauseou. Olhou-o bem atentamente. Viu seus olhos vermelhos, seu descontrole emocional e sentiu que sua fala enrolada denunciava presença de bebida.
O filho amado. Único. Saído de si. Um sentimento de urgência e terror tomou conta dela. Não, não ia permitir que nada de mal lhe acontecesse. Não ia deixar a vida tirar o que ela tinha de melhor. Abraçando-o, amparando-o, ela conseguiu que ele chegasse ao andar de cima. Ele vomitou e ela o banhou com água morna como há muito tempo não fazia, vestiu-lhe roupas limpas, deu-lhe o refresco preferido e o colocou na cama feito um menino desprotegido. Pacientemente esperou que se acalmasse e que dormisse embalado ao som de uma suave cantiga de sua infância. Ela impôs as mãos sobre a cabeça dele murmurando uma breve oração - como o fazem todas as mães ao doarem amor e perdão incondicionais.
Esgotada pela emoção e esforço físico, desceu as escadas e, pela primeira vez naqueles tantos anos de solidão e receios, tomou sua decisão sem titubear: pegou o telefone e enquadrou o pai ausente, convocou a família omissa, chamou o Conselho Tutelar da Cidade para as medidas responsáveis que deveriam, certamente, serem aplicadas. Somente depois de tudo isso concluído, ela se permitiu sentar para aquela espera solitária que antevia a dor que ainda sentiria - contudo estava agora finalmente serena.
Silvia Regina Costa Lima
2 de agosto de 2008