o Q que há
Incendiado dia na vidraça da janela grande do apartamento da sala cada carro que passava era como o flash novo de uma fotografia.
Sozinha no sofá refestelado, porem tensa em seu interior, Sonia adquiria maus hábitos a cada instante demorado de solidão como fumar um cigarro atrás do outro e nos intervalos roer as unhas, tiques nervosos, truques e sonhos fundindo-se numa mente entediada e vaga.
Atrás de si uma estante de livros didáticos, e ela até sabia o que tinha o Q gigante: o mais terrível de todos! Então se socorria ao apagão que era branco; o novo cigarro no dedo, e depois deste esmagado no cinzeiro de vidro sobre a mesinha do abajur ao lado do sofá, era a unha sem mais nada a roer: as dez unhas em vivo escarlate que se iam desfazendo as pontas.
Um vinho, uma tacinha de vinho para relaxar, mas bem antes de um comprimidinho pequeno e rosa, esquece o vinho, esquece o comprimido antes, e bem antes já foi esquecido, fechado como a janela para o barulho não interromper o pensamento no tenebroso Q, o gigante Q na capa branco-amarelada do velho e grosso livro cheio de orelhas, cheirando a mofo.
Por um momento, dado isto, fechou os olhos, encostando mais – falsamente – à vontade com a cabeça no fofo espaldar do sofá e lembrou do cheiro das livrarias, dos livros novos e agradáveis de ler, até ver que no fundo falso da ilusão lá estava o tenebroso Q, gigante Q a capa branco-amarelada do livro cheio de orelha cheirando a mofo.
Tudo de novo!
Novas fotografias oníricas: reflexos da manhã urgindo sobre os vidros dos carros velozes no dia abusivamente claro.
De repente um cheiro e de cheiro passou a aroma; a cabeça entre ombros tensos num bico de quem vai voar pela janela cerrada?, de aroma de lá da livraria e no canto esquerdo uma cafeteria. Os cabelos desgrenharam-se, percebe-se que dormiu mal à noite, que ouviu o miado de um gato novo a noite toda chorando não sabia aonde, mas que se encontra o gato... e foi que uma torneira pingava lá a cozinha, uma mosca que não conseguia sair de dentro de um copo em borco no criado-mudo tão distante, tão distante, suas mãos cheias de unhas roídas, amareladas as pontas dos dedos pelo fumo; angustia pós-comprimidinho rosa e pequeno; lenços de papeis queimando as margens do nariz, TV em baixo volume e personagens que balbuciam impropérios; liberdade do apagão no fundo falso da angustiante e plangente ilusão o pavoroso Q, o gigante Q na capa branco-amarelada do livro cheio de orelhas cheirando a mofo.
Esfregar a cara, e as luzes como flashes de fotografias já era incêndio em cores ardidas. Roendo o sabugo do dedo polegar deixou para lá e mergulhou solta na tensão desconcertante, livre para se comprimir no mar denso da angustia e assim sem querer, amarfanhada, dolorida, de cabelos desgrenhados, sombra turva na parede refletida, cuspindo resto de dedo, resto de unha; como um vinil arranhado foi voltando a uma sensaborona sensação relaxante tal como se um vento conseguisse atravessar as frestas de uma janela hermeticamente fechada.
Fechada, fechada, havia uma torneira pingando na cozinha como havia um gato recém-nascido miando choroso não se sabia aonde, mas parecia que inventava memória das historias que lia.
Novo flash sobre o rosto quase vermelho, um som como de quem ligou um motor silencioso: é o silencio!
Sonia, Sonia agarrando de novo o livro de capa colorida contido a extremidade estreita do sofá, este livro que você já leu vinte vezes e se ao foi este foi outro da mesma autora e é a mesma coisa: casamento, filhos, felicidade eterna, Danielle Steel e sua utópica Manhattam.
Olhou o próprio ventre murcho sobre uma camisola transparente, isto apareceu mais um novo cigarro entre os dedos; o cinzeiro de vidro cheio e sujo do cinza das cinzas, e agora o sol como se morasse no vidro da janela ferindo-lhe os olhos.
Não era mais uma fotografia. Inerte creu na tensa, todavia relaxada estava, realidade com os campos se abrindo numa augusta primavera, um aroma de alecrim, alfazema ou coisa assim, mas a fumaça do cigarro se acabando assim entre seus dedos e ao romper o som do ronco silencioso do motor um chiado nos lábios cheio de saliva, e a ponta miserável abatida sobre o imundo cinzeiro de vidro; os olhos bem abertos encarando o sol colado na vidraça e quando pensou em algo, talvez assim como se levantar dali veio o Q, o tenebroso Q, o gigante Q sobre a capa branco-amarelada e suas paginas de orelhas afinal se abrindo, cheirado a traça, cheirando a mofo, cheirando a... vida!
Nem notou já estando de pé, abrindo a janela, encarando o dia, o sol, a luz tomando-a.
Respirou, embora demorasse e sentiu como se fosse um chiado de um pombo, os mesmo lá em cima do telhado da igreja vizinha e que quando ela passasse sabia que iram evacuar sobre sua cabeça.
Afinal de tudo alem do cheiro da traça e mofo só o Q gigante e tenebroso era o mais importante.
Rodney Aragão, agosto de 2008