A vida em momentos - final
Voltou a chover. Choveu tanto que toda hipótese de caçada foi varrida pelas águas. Roque voltou a seu antigo posto. Além do gato da vizinha, havia agora as galinhas. Tinham descoberto o meio de fugir do galinheiro improvisado e, de vez em quando, atravessavam o seu território. Roque projetava-se sobre elas, qual um dardo. Achavam um jeito de escapar e pavoneavam a sua frente, deixando-o louco de inveja. (Os raros passeios pela rua não tinham certamente o mesmo sabor, pois que ia preso.) Seu Nestor já se tinha proposto a construir um novo galinheiro. Rosa havia reclamado:
- As galinhas estão sujando tudo.
Quanto ao casalzinho, Roque acostumara-se a vê-los. Faziam projetos, sentados sob a figueira. O coração de seu Nestor dividia-se entre a alegria e a tristeza: Tânia iria embora. Os dois conversavam muito pouco, mas com olhares entendiam-se. Quando era pequena e se aborrecia com as colegas, a filha ficava quieta a um canto, sem uma palavra. O pai comentava:
- Tânia tem algum problema.
Não sabia o que dizer: abraçava-a em silêncio. Depois, começava a contar passagens difíceis de sua vida. Como se falasse por falar. Tânia escutava-o concentrada, agradecida.
Quando era a sua vez de chegar cansado da firma, cansado e sobrecarregado, a filha dispunha-se a ouvir. Ele reclamava em termos violentos, sem poupar nada nem ninguém.
- Pai, eu te compreendo. (Ela sabia que ele precisava desabafar.)
Com Luís, conversava de vez em quando. O filho ainda não se habituara à nova velha vida. Lia muito, escrevia longas cartas para o exterior.
- Queres me ajudar, Luís? Tenho de trocar a lâmpada da varanda.
- Queres que eu mude?
- Não, eu mesmo posso fazer. Podes trazer a escada grande?
Conseguia movimentá-lo um pouco. Luís deixava seus afazeres, contrafeito ('Ele não compreende que detesto fazer essas coisinhas?') e vinha atender o pai.
- E o emprego, Luís?
- Estou me acertando com os Borges. Prometeram me chamar.
Seu Nestor não podia admitir que o filho, depois de ter conseguido bolsa para a Europa, viesse pedir encabulado:
- Podes me emprestar um dinheiro, pai?
Lurdes, por outro lado, agitava-se todo o tempo. Quando vinha em casa, determinava tudo com Rosa. Contava sobre os alunos, sobre os desenhos, sobre os rapazes... E, depois de um bom papo, ia logo preparar-se para um próximo compromisso.
A primavera chegou com muito sol e muito vento. Na noite de lua cheia, as estrelas pontilhavam no céu. Seu Nestor veio sentar-se no quintal. No fundo, Roque vigiava.
- Rosa, me faz um favor, me traz o chimarrão?
A empregada, que se dirigia para o quarto, assentiu.
- Quer que prepare um novo ou aquele mesmo serve?
- Pode deixar o mesmo.
Rosa colocou a cuia e a térmica junto a seu Nestor. Achou-o diferente:
- O senhor quer mais alguma coisa?
- Não, obrigado. Viu se alguém chegou?
- Ninguém, não senhor.
'Que será que tem esse homem? Tão macambúzio, o coitado.' Rosa procurou palavras, mas não encontrou o que dizer. Entrou no quarto e fechou-se à chave.
Seu Nestor divagava, sorvendo lentamente o seu mate. A solidão ia-o vencendo aos pouquinhos, na traição. Temia sucumbir à auto-piedade. 'Será que ainda não chegaram?', procurou distrair-se.
Em sua cabeça, a situação do momento se insinuava. Ia trabalhar: Pedro lhe arranjara coisa leve, representações... Era bom ocupar-se, ter um compromisso. Luís tinha arrumado o emprego, finalmente, mas não estava gostando. Terminava por acostumar-se. E Tânia, Tânia ia casar. Lurdes dava-lhe ânimo, só que não parava em casa.
Os movimentos de Roque chamaram-lhe a atenção. 'Só nós dois restamos, Roque. Esta casa é muito grande para nós. Muito grande, na verdade.' Roque abanava a cauda, em forma de concordância.
De repente, assaltou-o a vontade de abraçar todos os filhos, de beijá-los, de extravasar toda a ternura que parecia querer sufocá-lo. Uma espécie de ânsia apertava-lhe a garganta, impedindo-o de respirar.
'A noite está abafada, deve ser isso.' Seu Nestor pousou a cuia e tentou recostar-se sobre o banco. A cabeça, apoiada sobre o braço de pedra, descobriu o céu. Diante de seu olhar, as estrelas embaralhavam-se numa dança louca.
O velho tentou libertar-se, respirando fundo. A necessidade de ver Marieta, de contar com sua ajuda, fazia-se lancinante. O rosto se crispou, a mão procurou o peito: insustentável se tornou a opressão.
Roque, ao ver o dono estendido, começou a latir. Latiu desesperadamente, buscando alcançá-lo. Aos poucos, seus gritos se transformaram num ganido plangente, cortando a noite de lua cheia.