Melancias
Seu Amiltom era um homem forte com seus quase dois metros de altura, gostava de ficar enrolando e puxando o bigode longo, pele queimada pelo sol da roça, hábitos rudes, linguagem quase muda com estranhos e com os amigos também. Eu nunca vi seu Amiltom papeando com algum vizinho. Conversava muito mas somente com seu burro Tenório numa linguagem que minha professora não sabia explicar para nós meninos de 10 anos. Eram só onomatopéias de “vem”, “costa”, “epa”, “vamu”, “ooopoa” etc,que se ouvia da boca do seu Amiltom. Cuidador de burros e gado, nos impressionava e até assustava quando passava com sua carroça puxada pelo burro Caticó.
        Toda manhã, quando eu ia pra escola, passava por ele seguindo com a carroça cheia de melancias maduras pra vender na cidade. .               
         O calor dos dias de sol era sufocante e, imaginar aquelas melancias vermelhinhas por dentro, era um convite à gula, mas, seu Amiltom, nem dava bola para os meninos da escola que, como eu, ficavam sentados numa pedra esperando ele passar diariamente.
          Muitas vezes a gente cruzava os dedos, esperando que, nos solavancos da estrada ou nos tropeços do velho burro nas pedras do caminho,caísse da carroça uma melancia.
           A estradinha era de chão batido, mesclada de pedras e quando chovia formava lama nas partes mais baixas e um sulco profundo no leito da estrada, por onde a enxurrada passava.
            Numa manhã, Saulo, um colega um pouco mais velho, mais ousado que a gente, inclusive caolho, pois tinha furado o olho no arame da cerca da escola correndo atrás de uma galinha que a professora mandou a gente pegar pra fazer um caldo, bem ralo para servir com bastante macarrão e, comemorar o aniversário dela, se encheu de coragem e abordou seu Amiltom:
- “Seu Amiltom, dá uma melancia dessa pra gente repartir aqui com os colegas?”
 O seu Amiltom ignorou o pedido e ainda mandou a gente ir plantar, “porque no ano que vem vocês terão também, disse quase aos berros.
          A escolinha rural não tinha mais que 20 alunos e só cursávamos do 1º ao terceiro ano primário porque o 4º ano, nós tínhamos que cursar na cidade.
          O 4º ano era muito desejado, pois além de irmos pra acidade todos os dias estudar, no final do ano tinhauma festa muito bonita. Era época de inaugurar roupas novas, tomar sorvete e comer pão com mortadela no Bar Paramount, bem em frente à igreja da praça. Até sapato novo os pais compravam para os filhos formandos.
         Eu me lembro, que na formatura de primário da minha prima Naiara, a gente foi a pé e descalços os 8 km para chegar até a cidade. Todo mundo, com o pé queimando na areia quente, dava graças a Deus quando no caminho tinha sombra de uma árvore para descansar um pouco ou uma graminha verde pra pisar.
        Quando chegava na cidade, passávamos na farmácia Santa Luzia para lavar os pés e calçar os sapatos novos.
        Entre a farmácia e o grupo escolar, onde se faziam os discursos, rezava-se a missa e a entrega dos diplomas, não tinha mais que 1.500m, ir a festa e voltar, era osuficiente pra fazer bolhas nos calcanhares, tão grandes e doloridas, que tínhamos que furar com agulha quando voltávamos para a farmácia. Lá tirávamos de novo os sapatos novos, lindos, pretos, mas tão cruéis e perigosos que usá-los era quase um castigo.
        É difícil para uma criança entender que numa carroça cheia de melancias, tirar uminha só pra repartir com todas as crianças, não iria fazer falta pra ninguém.
        Tudo bem que eraele quem plantava, que sofria sob o sol pra regar as mudas quando pequenas. Tudo bem que era ele que punha palha de arroz sob as melanciazinhas, para que crescessem sem ter contato com o chão e nãopegar doenças.
         Mas negar uminha só pra nós, ainda mais que era aniversário da professora, era inimaginável, revoltante mesmo.
         Berrar com a gente então, era mais que incompreensível, porque éramos ensinados que quando quiséssemos uma coisa e não tínhamos dinheiro pra comprar, o certo era pedir e nunca roubar. Mas eu acho que seu Amiltom nunca teve família. Ele não sabia quase nada das coisas que a gente aprendia em casa e na escola. A vida dele era falar com o burro e na época da safra encher a carroça de melancias e levar pra cidade. Fora da safra, cortava árvores em pedaços de metro, fazia umas pilhas na beira da estrada e depois enchia a carroça que também levava pra cidade.
        A gente às vezes reclamava com a professora para ela interceder junto a ele e conseguir, nos dias mais quentes ou nas ocasiões especiais, pelo menos uma melancia pra gente repartir. Mas ela, toda cheia de princípios e métodos, ensinava tudo que tinha na cartilha Caminho Suave, nas ginas da Bíblia, as tabuadas de Osvaldo Sangiorgi, mas não extrapolava uma palavra exceto a aula.
        Ainda bem que tudo isso mudou e as crianças hoje podem contar com a iteração de outras pessoas da família, dos pais, da internet e de passeios, etc., na educação regular.        O ensino era muito sagrado, formal e rígido. Sinceramente não dava o menor prazer estudar. A única coisa boa da escola eram os “rachas” com um bola de capotão antes da aula...e vez ou outra comer um pedaço do ovo frito que vinha na marmita dos colegas. Época difícil, o estado não fornecia nada de comida para as crianças, nada de condução pra ir pra escola, nada de salários educação, nada de nada. Eram só os pais para nos manter.
        Um dia, sem querer e muito envergonhada depois, Dona Anice, nossa linda professora, deixou escapar uma frase, que nos deixou muito animados:
- “Tomara que essa carroça tombe um dia nesses buracos e rolem todas as melancias aqui pra escola. Quero ver vocês barrigudinhos de tanto comer.”
         Era o último mês de aula daquele semestre. Era o mês mais bonito pra meninada da roça. Hasteava-se um quadro de madeira com uma imagem de São João estampada,num mastro de eucalipto comprido, o mais alto que nossos pais conseguiam encontrar.
         Coisa maravilhosa, o povo orando, as avós com terços nas mãos e umas até chorando, levantavaaquele imenso pau, numa altura que a muitos metros de distancia, todos viam  a bandeira de São João.
         Os homens mais fortes de dinheiro e saúde eram os que tinham os mastros mais altos. Dava até pra saber na redondeza quem era mais forte, por conta da altura do São João..
         Seu Antonio, emburrecido pela convivência com seu burro, nunca foi num terço, numa procissão. Nunca levantou o mastro.
        Mas, foi numa tarde de domingo, o pessoal da colônia toda orando em altos brados, mastro a meio pau, São João lá em cima tremulando, lá veio seu Amiltom com sua carroça. Não deu outra, começou um pipocar de fogos e rojões em homenagem a São João que ensurdecia todo mundo.
        Um rojão de vara de três tiros saiu direto pra cima do burro que disparou morro abaixo, arrastando carroça, seu Amiltom e asmelancias, para nossa alegria, caindo pra todo lado.
         Para nós, meninos, era a coisa mais esperada. Os mais velhos riam da cena.
         A rezadeira jogou longe o escapulário, tropeçou no andor, chutou um vira lata que estava latindo perto dela e, correu ajudar seu Amiltom, que estava lá estatelado na estrada.
         A rezadeira se ajoelhou perto do seu Amiltom, viu a cabeça dele rachada numa pedra como as melancias maduras, fez o sinal da cruz com a mão direita e falou:
- “A professora tinha feito mesmo sem querer uma previsão do acidente”.
         Para mim era tudo vermelho, sangue e miolo de melancia misturado na areia quente da estrada.
          No outro dia não teve aula, a professora não veio, os alunos não foram, a carroça não passou...mas a vida continuou. 
Augusto Servano Rodrigues
Enviado por Augusto Servano Rodrigues em 30/07/2008
Reeditado em 30/07/2008
Código do texto: T1105315
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