O BANHO AZUL

Elba Ranga na verdade parecia muito com uma tanajura: olhos esbugalhados e incrivelmente marrons, toda cheia de pernas por todos os lados, cintura fina, bundinha redonda, arrebitada; braços finos e aquela cor roxinha de uma formiga durante a correição, louca para perder as asinhas de anjo e cavoucar a areia úmida e fofa e nela depositar suas futuras gerações, infinitas, de formigas-quenquém, fosse ela uma formiga.

Naquele dia, Elba Ranga estava estonteantemente bela em um vestido azul esvoaçante. Suas curvas generosamente desenhadas pela genética e enfatizadas pelas longas caminhadas, fizeram com que dois dos homens que trabalhavam em uma construção da rua em que vinha descendo, toda faceira, ganhassem um torcicolo incurável.

Os cachorros, presos nos quintais e cercados pelas grades dos portões, uivaram ao vê-la passar, uivos duplicados que mais pareciam assovios estridentes de fiu-fiu. Os gatos arrepiaram-se, como se passasse por eles uma alma das trevas, amedrontados que estavam com sua beleza. Uma borboleta pousou sobre seus cachos espetadinhos, como se buscasse ali a beleza e o perfume das flores.

De certo modo, havia mesmo nela um perfume inexplicavelmente sedutor, o qual exalava naquele dia de um jeito estranhamente sutil e podia fazer-se sentir até mesmo pelas narinas menos aguçadas dos homens mais insensíveis. Havia também uma aura que filtrava os olhares masculinos e faziam dela mais apessoada do que dantes. E ela, sem dar atenção a detalhes insignificantes, seguia sua jornada toda de cabeça erguida, cantarolando sabe-se lá o que.

De repente, Elba parou rente a um muro alto e chamou um nome de homem, o qual logo se debruçou sobre o muro para espreitá-la. Era Estrôncio, único homem que fazia todas as pernas de Elba Ranga estremecerem. Seus olhos faiscaram ao vê-la e, desta feita, foram as pernas dele que estremeceram. Ele soltou um mugido inaudível, como boi adivinhando que estava prestes a entrar no abatedouro.

- Abre o portão para mim, Estrôncio – bradou a garota.

Ele soltou ainda uma baforada antes de dar um peteleco na bituca de cigarro e abriu ligeiramente o portão, fechando-o tão logo a última sombra de azul acabasse de adentrar aquele recinto até então imaculado. Daí para o que aconteceria depois foi um pulo, e só posso narrar pelo que ouvi e pelo que foi conferido pelos olhos maldosos que sempre estão de plantão amoitados em algum lugar do lado de fora do muro, porque esse narrador que vos fala não é vidente nem por profissão nem por divertimento e nem estava presente na ocasião.

Conta-se a lenda que Elba Ranga sentia-se deprimida, isolada do mundo, bocejando à toa e acordando já com sono toda manhã quando resolveu consultar uma benzedeira bem recomendada para curar-lhe o quebranto e dar-lhe conselhos. Desta feita em diante, a vida da formiguinha faceira nunca mais seria a mesma.

Ao chegar na casa da mulher, esperava ser conduzida por uma velha senhora para um quartinho escuro, embolorado e minúsculo, onde a sorte seria lançada. Porém, foi recebida pela própria benzedeira, que aparentava ser ainda jovem. Ela sorriu para Elba Ranga. Não havia dentes de ouro na boca da mulher, mas de um branco reluzente. Ela aparentava ter no máximo quarenta anos de idade e era culta, refinada.

- Bom dia senhorita, quer fazer o favor de entrar por aqui. E indicou-lhe um banquinho de madeira de lei antiga disposto ao lado de uma mesinha em um quarto amplo e bem ventilado.

Elba Ranga espantou-se com o asseio do lugar e estranhou ao deparar-se com um piso de cerâmica branquinha, paredes pintadas de novo, muitas velas espalhadas por uma espécie de altar onde se via imagens de santa não sei o quê e não sei o quê, todas elas espalhadas pelo chão, pelas prateleiras e pela mesa da mulher, disposta no canto do quartinho muito bem iluminado. Totalmente diferente da idéia de cartomante que lera em Machado de Assis ou outro gênio da literatura a que estava acostumada. A única exceção era o esmalte dela, propositadamente vermelho incandescente, como toda vidente supostamente está fadada a usar.

Primeiro a mulher rezou um Padre Nosso e depois pediu permissão para o anjo da guarda de Elba Ranga para tirar a sorte da garota. Em seguida, amarrou a cara, como se provasse um gomo de limão dos bem azedos e começou a bocejar. Baixou a pestana como se fosse dormir e, de cabeça baixa, começou a murmurar em uma linguagem incompreensível. Elba Ranga estremeceu. Não abrira a boca e a mulher já adivinhava sem palavras o motivo que a levara ali.

- Corta o baralho em três. Disse com voz de quem acaba de acordar de um transe ou de um sono profundo.

E ela cortou com a mão direita estremecida.

- Ai fia, seu futuro tá obscuro. Vejo aqui um homem branco e um homem moreno na sua vida. O homem moreno morre de amor por ti, mas você não gosta dele não porque ele é bem novinho. O homem branco é muito mais velho do que você e é comprometido, mas vai cair aos seus pés, louco de amor. Vou ver agora o seu passado – e embaralhou freneticamente as cartas em suas mãos.

- Corta o baralho novamente, fia. – e ela cortou – vixe! Sua vida está amarrada, se você não se cuidar, vai ficar sem nenhum dos dois. Vejo que você está sufocada, fizeram feitiço em vela de macumba, preta e vermelha, para ti. Vejo você chorando muito. Suas lágrimas já secaram, mas você ainda vai chorar um pouco mais, mas a felicidade a que você está destinada vai compensar todas as lágrimas que você já chorou na vida.

Os olhos de Elba Ranga brilharam de contentamento. Era aquilo mesmo que ela queria ouvir. Havia discutido com Osnir duzentas vezes naquela semana. Chorara poças de água salgada e nem assim conseguira amolecer aquele coração de pedra. Namorado assim, sinceramente é melhor ficar sozinha, pensava ela, enquanto via a cartomante embaralhar as cartas. A mãe dizia que devia ter mais paciência com ele, mas definitivamente ela não tinha.

A benzedeira respirou profundamente três vezes enquanto embaralhava as cartas.

- Corta mais uma vez.

Elba Ranga parecia paralisada. Respirou três vezes profundamente também, no mesmo ritmo da benzedeira, chegando quase a perder o fôlego de uma vez por todas. Cortou as cartas e seus olhos marejaram, mas ela não chorou ali na frente da mulher, que era coisa feia de se fazer.

– Vou te passar um banho – e escreveu em um papel encardido o que estava falando para Elba Ranga – você chega em casa, fia, reza para o seu anjo da guarda e acende um maço de velas brancas em um lugar acima da sua cabeça, que é para ele iluminar o seu destino. Uma vela por dia, viu, não é tudo de uma vez só não. Depois, você pega um vidro de creolina, separa em três partes iguais. Você vai fazer com esse vidro de creolina três banhos para desfazer o feitiço, viu? Junta em um balde um litro de leite, três punhados de sal grosso, um litro de água da chuva e uma pedra de anil e coloca uma parte da creolina dentro do balde. Quando você for se deitar, reza para o seu anjo da guarda e pede para ele te iluminar e quebrar o feitiço quando você tomar esse banho. Depois, você joga tudo do pescoço para baixo durante três dias seguidos. A mulher fez o sinal da cruz e estendeu a mão. São dez pratas.

- Muito obrigada. A senhora é um anjo – tirou de dentro do bornalzinho dez moedas reluzentes e depositou na palma da mão da mulher.

- Se precisar, pode voltar aqui depois que fizer o banho contra feitiço que passo um para abrir o caminho.

- Muito obrigada mesmo – Repetiu Elba Ranga ainda mais uma vez.

Ao sair dali, viu que se formara uma fila de pessoas para serem atendidas pelas bênçãos milagrosas daquela cartomante-benzedeira e seja lá mais o que for. Era uma sexta-feira pela manhã. Elba Ranga saiu dali e foi direto a uma casa especializada comprar a água de chuva e a creolina que não tinha em casa. Ia fazer o banho naquele dia mesmo, depois que todos tivessem dormindo. E assim fez.

Acordou no dia seguinte antes do primeiro raio de sol com uma enorme dor de cabeça, com tontura e enojada com o cheiro da creolina que estava impregnado em seu corpo. Olhou-se no espelho. Estava azul do pescoço para baixo! Primeiramente levou um susto, mas lembrou-se do banho. Precisava tomar outro e esfregar o chão do banheiro antes que alguém acordasse e visse aquela lambança. Aproveitou para esfregar o chão da sala e da cozinha. Acordaram com o barulho do esfregão e estranharam ao vê-la cantarolando e esfregando o chão antes mesmo do nascer do dia. Mas aquela era uma cena descomunal e merecia ser elogiada. E assim fizeram.

Na noite do sábado, sucedeu-se a mesma coisa e ela tomou cuidado para limpar bem o chão do banheiro antes de se deitar. Afinal, o dia seguinte era domingo e queria demorar-se na cama um pouco mais. Não agüentou. Acordou novamente antes do nascer do sol com a mesma tontura e o mesmo enjôo do cheiro de creolina. Se ela estava se sentindo assim, certamente nada de mal chegaria perto dela. Seria espantado pelo cheiro da creolina. Olhou-se no espelho. Estava azul novamente e traços brancos escorriam pelas pernas, como se fosse pele de lagartixa descascada, mas era o leite que fora derramado lentamente em seu corpo, misturado com o azul do anil, e enxugado com batidinhas leves da toalha, sem esfregar, conforme recomendara a benzedeira.

Finalmente, chegou o domingo à noite, dia do terceiro banho. As pessoas não conseguiram ficar dentro de casa durante todo o domingo, sufocadas que estavam com aquele cheiro de latrina que não sabiam de onde vinha. E ela caladinha, só tomando os banhos que a deixavam azul de contentamento e de anil.

Na segunda-feira acordou pela última vez sufocada e tomou o último banho de alívio. Finalmente, sentia-se livre daquele feitiço e daquele cheiro. Mais pelo cheiro do que pelo feitiço, sentia-se limpa. Mas ainda estava amarrada. Precisava voltar logo na casa da mulher para abrir o caminho. E assim fez. Pegou o papelzinho encardido e lá estava o telefone da mulher, destacado com dois riscos embaixo dos números. Titubeou, mas no fim do dia discou aqueles dígitos como se hipnotizada.

- Olha, fia, agora são cem pratas, que você vai ganhar o dobro dez vezes.

- A senhora pode me atender amanhã na hora do almoço?

- Amanhã não que já tá cheio, mas depois de amanhã pode vir que eu te passo uma magia boa para abrir caminho e depois a gente faz uma para amarrar namorado, que você tá querendo casar que eu sei.

Elba Ranga esperou ansiosamente o dia marcado e chegou lá toda confiante. A feiticeira foi logo passando um banho de sementes de girassóis, com mais uma série de sementes oleaginosas para ela atrair fartura para junto dela, porque, afinal, girassol é amarelo da cor de ouro. E óleo gruda. Estendeu a mão e a garota depositou ali uma nota de cem pratas. Ia despachando já a garota, quando esta disse piscando um dos olhos:

- E a reza para amarrar namorado que a senhora falou que sabe fazer e que é forte?

- Ah, fia, para amarrar namorado são mais duzentas pratas. Amarrar namorado é duas vezes mais difícil do que abrir caminho, você sabe. Mas depois você vai ser feliz para sempre com o seu homem aos seus pés, eu prometo.

- Tá aqui. Mais duzentas pratas. Mas faz uma magia bem forte para amarrar o Estrôncio que eu quero casar com ele. Elba Ranga retirou de seu embornalzinho as duas últimas notas graúdas que ganhara naquele mês de trabalho.

- Fia, não se preocupe que você vai casar com ele sim. Primeiro você chega em casa e reza um credo. Depois escreve o nome dele embaixo do seu pé esquerdo e reza essa oração aqui para São Cipriano, ó – e estendeu um papelzinho encardido com uma oração bem forte, cheia de verbos no imperativo – depois você passa três gotas do perfume do amor atrás da orelha quando for ver o seu amado. Pega um punhadinho de pó do amor e joga na gaveta de sua roupa intima. Pega uma meia dele e joga um pouco de pó do amor lá dentro e coloca uma calcinha sua junto com o pó. Escreve o seu nome inteiro e coloca dentro da meia, junto com o nome dele em um papel vermelho. Depois, guarda esse patuá na sua gaveta de roupas intimas, mas não deixa ninguém saber que você fez essa magia, porque ela é muito forte. Se alguém souber, ela acontece ao contrário, e você não quer gastar duzentas pratas à toa, não é mesmo?

Elba Ranga saiu de lá toda confiante de que teria Estrôncio aos seus pés. Já sabia onde encontrar o tal pozinho e o perfume do amor. Passou na loja de produtos e comprou os dois. Ao lado, havia uma loja de roupas. Entrou e gastou seus últimos tostões em um vestido azul esvoaçante. Dali, foi sorrateiramente ao quintal de Estrôncio. Viu que o portão estava aberto, entrou sem ser notada e pegou um par de meias no varal, que era para ele não desconfiar se ela pegasse só uma. Chegou em casa e fez o feitiço antes de ir deitar-se.

Na manhã seguinte, tomou um banho bem quente e experimentou o vestido azul. Olhou-se no espelho: cintura fina, a bundinha de tanajura empinada, todas as pernas de fora, os olhos esbugalhados: uma beleza aterrorizadora invadiu-lhe a alma! Parecia que era uma beleza sobrenatural. Ia ver Estrôncio naquele mesmo instante.

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Abraços literários

Criado em julho de 2007 por

Langeli
Enviado por Langeli em 30/07/2008
Reeditado em 18/01/2011
Código do texto: T1104099
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