A velha
Ela girou a chave e entrou na sala de seu apartamento que fedia a naftalina e poeira. Nem acendeu a luz, pôs logo o saco pardo abarrotado de compras sobre a mesa de jantar e abriu as cortinas espessas para deixar a luz do sol invadir, dando vida aquela sala mórbida e senil.
Os mais de sessenta e cinco anos pesavam por sobre suas costas, curvando-a. Seus cabelos grisalhos e em ondas prendiam-se em um coque malfeito, impedidos de cair por sobre seu rosto cheio de rugas típicas de velha.
Sua velhice a envergonhava. Enraivecia-se por não poder mais cumprir as árduas tarefas domésticas, não poder limpar os cantos imundos e frios de sua casa soturna. Não poder trocar as inúmeras lâmpadas queimadas no seu teto.
Envergonhava-se ainda mais de estar ultrapassada. De não conseguir usar o computador velho que apodrecia sobre a mesa do quarto de seu filho, que nunca mais a viera visitar.
Sua expressão era de acentuada amargura. Ainda sentia a perda de ter sido abandonada pelo marido. De ter sido entregue às sombras e ao frio, como uma indigente.
Colocou o LP do Vinícius que tinha na sua vitrola quase tão velha quanto a própria velha. E ouviu “Samba em prelúdio” uma, duas, cinco, oito, dez, doze vezes.
Andou até seu quarto e viu o porta-retratos que trazia uma foto de três pessoas felizes. Era uma família. A mãe. O pai. O filho pequeno. Não era a velha. Não era seu marido. Ou seu filho. Poderia ter sido.
Em muitos outros porta-retratos, pessoas diferentes sorriam para a velha, sempre em trios. Sempre os pais e o filho.
A velha lembrou-se de uma vida que nunca teve e lamentou-se por não poder voltar àqueles tempos que nunca existiram.
Mesmo muito emocionada, não derramou uma lágrima.
Voltou à sala onde Vinícius agora cantava “Onde anda você” em outro disco. Pegou o saco pardo que arrebentou largando laranjas e tomates no chão imundo. A velha os observou e pulou-os, ignorando-os. Jogou os restos do saco pardo no lixo.
Trocou o LP do Vinícius por um do Chico Buarque. Pegou o telefone e tentou o número da casa do filho insistentemente.
Ninguém atendeu.
As lágrimas começaram a cair de seus olhos, frenéticas. Quase jorrando. A velha não podia mais agüentar segura-las. Estavam fora de controle.
Abriu a porta e ainda se ouvia Chico Buarque lá dentro. Andou até a escada enquanto ele estava no meio de “Pedaço de Mim”
Ela não teve medo de sua decisão, pensara naquilo durante anos. O vão entre a escada que formava uma espiral de lá, do 10º até o saguão. Ela debruçou-se sobre o muro que protegia a queda, e tropeçou em sua própria mente. E flutuou no ar por alguns instantes, até se acabar no chão em tempo de terminar a música do Chico: “Leva os olhos meus, que a saudade é o pior castigo e eu não quero levar comigo a mortalha do amor, Adeus.”