As aparências enganam

A cena

O corpo estava lá, estendido no chão. – Soube-se mais tarde que havia despencado do décimo quinto andar. – À primeira vista tratava-se de uma mulher jovem, de estatura média e boa aparência, isso tudo distribuído num corpo com idade máxima de uns vinte e oito anos. A pele, de tonalidade clara, contrastava com os cabelos negros e de um brilho intenso. Os olhos cerrados impediam que se visse além das pálpebras. O corpo bem torneado e que impressionava por sua rara beleza, era agora observado por várias pessoas ao seu redor e que ficaram a imaginar qual era a razão daquela cena.

As testemunhas

Não tardou e surgiu o primeiro comentário: - Será que foi suicídio?- comentou um senhor de cabelos grisalhos, de pele morena e curtida pelo tempo, provavelmente um aposentado girando em torno de uns sessenta anos de idade.

-Não, credito não, com certeza foi não. Eu acho que foi briga de marido e mulher; vai ver que o cabra-macho jogou ela lá de cima. - Retrucou um paraibano com jeitão de taxista, já demonstrando certo convencimento. Uma jovem senhora que acabara de chegar, para não ficar de fora dos comentários, concordou com o paraibano e acrescentou:- quem sabe não se trata de crime passivo.- Não era bem isso o que deveria ter dito, passional talvez fosse o termo mais apropriado. Mas o importante é que ela tinha se manifestado e todos prestaram a devida atenção. Mais adiante, um homem trajado com roupa e sapatos brancos e portando uma maleta preta observou:- vai ver que ela era HIV positivo e.... -Não precisou dizer mais nada. As pessoas que estavam mais próximas afastaram-se imediatamente, devido à grande quantidade de sangue existente no local.

- O doutor tá com a razão. Todo mundo se afasta do corpo. – Falou um baixinho truculento com a voz firme e autoritária. Expressou-se com tanta determinação ao dar a ordem que todos acreditaram ser ele alguma autoridade e prontamente obedeceram. Envaidecido com a atitude que acabara de tomar, encheu-se de brios e aproveitou o momento para convocar algumas testemunhas para possíveis depoimentos a serem tomados pela polícia.

- Maldita a hora que abri a boca. Agora vou ter que ir para a delegacia - Pensaram quase que simultaneamente o taxista e a jovem senhora. Nesse momento, já se ouvia o som estridente das sirenes da ambulância, da polícia e do corpo de bombeiros. Com as autoridades no local, os incautos que ainda insistiam ficar próximos ao corpo foram definitivamente afastados, apenas permanecendo aqueles que foram sutilmente intimidados anteriormente pelo baixinho truculento. Alguns destes ainda tentaram esquivar-se, mas foram impedidos pelo tenente que chefiava a equipe policial.

A conclusão

Algum fato ocorrido nessa história e que pode não ter ficado claro o suficiente para o leitor, agora será devidamente elucidado, principalmente após as informações prestadas pela nossa eficiente polícia. E ainda, enfocando a máxima de que as aparências enganam, podemos tirar algumas conclusões em definitivo. Senão vejamos: aqueles personagens apresentados como testemunhas, na verdade não se prestavam para tal, uma vez que nenhum deles presenciou a queda do corpo; estavam lá mais como curiosos do que por qualquer outro motivo. E mais, o senhor de cabelos grisalhos, característica essa que conferia a ele um ar de seriedade e respeito, não era um senhor aposentado, na verdade era um peão de obra com idade em torno de quarenta e dois anos e tinha aquela fisionomia envelhecida mais pela vida dura e sofrida que levava do que pela própria idade e com certeza pelas caninhas da roça que tomava sempre que o encarregado da obra bobeava. O homem de branco não era doutor coisa nenhuma como muitos imaginaram; vestia-se assim por estar fazendo obrigação para o santo, enfim coisas da umbanda, e a maleta preta que carregava era apenas uma marmita térmica que ele levava para o trabalho todos os dias.

Por fim podemos concluir que nem tudo que reluz é ouro e que muitas vezes as aparências enganam.

Esclareceu-se mais tarde, depois de concluídos os trabalhos da perícia, que o corpo estirado no chão não era o de uma mulher e sim de um homem que tinha o estranho hábito de travestir-se sempre que realizava suas tarefas domésticas – o que se há de fazer!! – e que a tragédia aconteceu enquanto ele limpava a janela do apartamento. Foi puramente acidental.

Beto Guimarães
Enviado por Beto Guimarães em 28/07/2008
Reeditado em 29/07/2008
Código do texto: T1101877
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