O CASARÃO
O CASARÃO Vagamente vou deixando estas malnoitadas linhas escapar da teia do meu ser, apenas a sina da vontade vai olhando e desfazendo os nós, minha mãe do fundo de sua solidão, enxugava sua tristeza e falava:- Você é diferente de todos, está se abandonando, tudo tem seu limite, até mesmo esta mania de escrever e esparramar seus gestos contidos, puxou a cegueira de seu pai, deslizando como uma lagartixa silenciosa pelo bolor das paredes.Escrevo para o Deus-Ninguém ele conhece os recursos da minha alma, os segredos mais íntimos, a dores reveladas no discurso de meu tempo.Pai cego num canto da sala, aproximo com passos medrosos:- O que é ser de cegueira?- Filho, é ter uma eterna sombra no fundo dos olhos e sentir que se esparrama pela alma toda.Mãe olha a pena da pena e revolteia os perigos das chegadas, traça para o pai um mapa das caminhadas, estipula a geometria fria das apalpadelas pelas paredes do Casarão, até atingir o canto do quarto, onde perto de seu radinho de pilhas haverá de ouvir noticias de um mundo distante forjados entre crimes e solidão, ficará ali o dia todo preso e amordaçado de palavras.“Deus-Ninguém”Minha fala de sentir interior, escrever cartas que nunca chegarão, é que a dor de almas mortas, vai se esticando todo, até perder-se numa funda linha do horizonte, este Deus-Ninguém é de dentro, as vezes cegos como os olhos de meu pai, minha vontade é de jogar o antigo e o presente dentro deste Casarão para poder viver alguns breves momentos de esperança, não precisar de soluções, a fraqueza parece derrubar a todos aqui, as pernas travadas da minha irmã frágil e se arrastando pelo chão, penso nos porões jogados para dentro de cada um de nós...“Deus-Ninguém, as poucas vezes que conversei com pai, senti que habitávamos o mesmo mundo, o meu transparente de luzes não entendidas, e o dele de uma eterna treva construídas em toda sua vida, ambos nos alimentando de uma sombra vadia e desgraçadamente covarde.A minha irmã rastejava, um olhar de brilho acostumado e medrosos, boneca de pano nos braços e uma dor de verter lagrimas e de ficar grudado nos limites da memória.- Porque não se levanta minha irmã, porque não fica de pé, e aprenda o caminhar?- Apenas desaprendi do andar, sinto medo da distância que vai do limite da cabeça até os meus pés, é uma tontura de invasões até o chão, sinto que tudo que resta, será cair... cair... cair...A mãe olha, resmunga, aproxima, traça voltas com a faca na batata e tem o todo dela, joga no tacho em que a cebola e o cheiro verde darão a precisão do gosto.- Filho, é preciso que vá encontrar uma vida lá fora, aqui tudo tem um gosto de sofrer, esse seu Deus-Ninguém é possivelmente obsessivo de sua criação, não admite compartimento de luzes neste casarão.As emoções humanas não passam de um jogo, em que peças são deslocadas obedecendo uma regra.As vezes acordo com a sensação que Deus-Ninguém está longe de entender que toda esta costura e cerzidas esperanças, o encantamento fica apenas por conta da palavra, meu mundo é o fora, a casca do ovo escondendo a gema... a semente....O avô devorando a bíblia e a avó desesperada, comida no fogo, feijão cambuquira, arroz, carne seca e a mãe gritando - “Porque tanto desperdício, a maldição de Deus é na terra, não nos frutos entravados dentro da terra” Falam de terra, e penso que todo quintal é terra de ninguém, as arvores são regadas com as águas dos olhos e seus frutos são amargos de existência pelo velado e o desvelado...o avô lendo trechos de Isaias e a voz vai se dissolvendo na neblina de cada um, fica um soluço de resignadas palavras desaparecidas na asperagem do tempo...árvore de ressecados frutos...ressecadas frutas...- ‘Deus-Ninguém, também nunca recebi o gosto do doce, apenas o salgado, também exaurido de significado...não sei de qual gosto retirar o acreditado.Mais que a dor no peito, o que me invade é o medo, o casarão me esperando trágico de destruição e mantendo refém, todas aquelas pessoas que aprendi a amar e entender suas trevas e solidões.Tenho vontade de vê-las e sentir que não haverá partidas e que seus rostos se abrirão num sorriso diante da minha dor, acabará o mundo das divisões, suas almas são puras por serem tecidas em trevas próprias.Tem momentos que sinto que estamos numa cela, voltando das esperanças e esticando as palavras para dentro de pesadelos, perdemos o dom de sonhar, olhos que se perdem dentro do dentro.O Casarão surgiu depois da casa tomada, a mãe vestiu-se de preto e falava que dificilmente alguma estrela viria para seu vestido, o avô afirmava dando um tapa na bíblia que “na casa de meu pai, há muitas moradas“ ficava imaginando que se estas moradas existiam, elas deveriam estar cercadas de imensos e altos muros, para morar nelas deveríamos ter algo de especial, o vinho, o sangue, a ceia leve de imensas paisagens e um pão de repartidas formas, não eram coisas para nós...certamente para os poucos escolhidos, aqueles mansos de almas, os cordeiros do senhor.A casa fora tomada, tristeza de finalizar um mundo e ter que caminhar para o desconhecido, extrair do medo o silencio de percorrer, éramos uma tropa de derrotados, que vínhamos pela estrada, olhos de esperanças perdidas, até o momento que avistamos o Casarão, abandonado e cercados de árvores que pareciam não ter vida, Casarão de moitas entre os ladrilhos e manchas de bolor verde , grudadas nas velhas paredes, pedaços de luz, atravessavam o buraco dos telhados, um cheiro de mijo e portas roubadas em que restaram apenas buracos...perder-se no tempo é desaprender a palavra, ter o tombar das idéias, se tudo é trazido do oco, é porque a febre da memória queima as veias de meu corpo, atraso o tempo da linguagem, pulo o cerco das correções, sinto o limite angustiado do Casarão, em algumas noites sinto os passos invisíveis, um arrastar de correntes, o longo chorar medroso e enlouquecido de minha irmã, suspiros e gemidos percorrendo as horas, segundos, minutos, imaginando que todas as jornadas são jogadas para dentro da noite, tudo para ficarmos órfãos de uma luz mentirosa, as palavras chegam acompanhadas de um exército de mortos.Alguma coisa não estava bem comigo, suportei muito tempo a sensação de febre no corpo, fraqueza, até no momento que senti a primeira golfada de sangue, olhei assustado, tive medo de sentir mais medo, minha camisa manchada de medo, todos olharam, todos sentiram que um silencio enorme tomaria os cômodos do Casarão, lagrimas fugiram do dentro dos olhos,cruzando meu rosto coberto de matas fechadas e flores apodrecidas.Mãe olha tio perto do buraco da porta e fala:- Somente você pode levar Lucas para ser atendido, não temos dinheiro, ele não pesa quase nada, pode por no carrinho de mão, talvez também conseguir carona...deixa lá e volta, precisamos de você na plantação, dependemos da colheita do inhame para talvez podermos sonhar em melhorias...As paredes brancas, enfermeiras de brancos e olhares brancos de curiosidadeTubos brancos enfiados no nariz e nos magros braçosMangueiras conduzindo um vermelho sangue estranho para dentro de meu corpo, sensação de sono e um cansado cheiro de remédio,Expulso do Casarão pela doença, só no mundo, só de apenas só, invadido de memórias, as imagens refazendo caminhadas para dentro, mapas de fundos desencontros.Em que região o meu Deus-Ninguém se refugiou para não mais estender suas leprosas mãos?O médico tem o olhar preocupado, avança diagnóstico sobre a doença, atrás do bigode tudo é mistério, apalpa o fundo de meu peito, impossível ver a dor escondida dentro do meu medo, impossível encontrar minha alma escondida nesta angustia.Exilado para um templo de enfermidade e macas fugindo com pacientes pelos corredores do hospital...O médico fala e olha para a enfermeira:- Ele tem o corpo, os pulmões, tudo tomado pela doença, está no ultimo estágio,Vem a lembrança da casa tomada, agora meu corpo também tomado, acredito que nunca pertencemos a nada...sempre um resto de mentiras a viver por nós, minha alma sempre vegetou por espaços sem luz, ainda poderei estar na via crucis de meu corpo, percorrer alguns abismos até ter a esperança de encontrar o Casarão.A enfermeira ouve o médico:- Tem que ser removido...que pena, está no ultimo estágio...a viagem é longa, pode não resistir...aqui também não resistiria...morte na certa!Estou pronto para todas viagens possíveis, mesmo sem levar comigo a esperança, peço ao motorista e enfermeiro que me levem ao Casarão, talvez seja a ultima visita, quero as despedidas, abraçar meu pai e beijar seus olhos ausentes de luz, falar para mãe que brevemente uma estrela virá brilhar no negro de seu vestido, beijar minha irmã e sua bonequinha de palha e falar que são lindas como a luz descendo nos buracos do telhado, falar com tio breves palavras e pegar a bíblia do avô e dizer , que naquele mundo que vive pode sempre haver a ressurreição, acariciar os ralos cabelos brancos da avó, todos que sempre estiveram vivos e transitando suas mortes para dentro de mim...nunca esperei muito desta difícil alegria de viver...tudo sempre foi muito amargo...lapide de todos os nomes que invadiram o álbum de minha existência, tudo ficará num único abraço, único beijo, abraço que nunca dei, fui contido pela mão do medo...nunca recebi um carinho sequer e hoje sinto que isto poderia ter mudado tudo...Enfermeiro e motorista recebem ordens trazida por uma voz severa e preocupada, estou numa ambulância, pelas janelas vão desfilando algumas arvores de verde distante, outras sombrias como o destino que me espera,uma sensação de desespero viaja pela ambulância, sinto a vida como um peso, algo morto, esta inútil ajuda do Deus-Ninguém, queria poder sonhar...mas também é tão difícil.Quero entrar no casarão com meus próprios pés, encontrar cada um dentro de seu mundo, palpável em sua pele de tristeza, retirar o ultimo de minha força, ninguém, nem nada impedira de passar uma ultima vez pela carunchada porta de madeira e encontra o triste movimento de minha irmã, o olhar da mãe impossibilitada de atingir minha alma, delicada e fria como as flores que ficavam no vaso ate o momento do ressecado, entrarei com a sede do encontro, abraçarei a todos...todos que retiramos do poço a mesma água e dividimos a mesma sede. O enfermeiro e o motorista, acompanhavam minha entrada, todos na mesa, o pão sendo dividido, o prato de sopa de inhame, a oração de agradecimento, os olhares me descobrem, espectros avancem sobre mim, abraçam, choram e ocultam um sorriso interior, beijo de ser primeiro beijo, despejo um adeus em cada olhar, olhos de limbo verde, vejo as marcas do pesar em cada olhar, chego perto do pai, passo a mão em seus longos cabelos e imagino se não existe uma região dentro dele que o torna impossível de sonhar, abraço minha irmã com sua boneca de pano a retalhos de tristeza, vem para a porta, todos me acompanham, o tio em seu silêncio, avanço quase desmaiando, a porta da ambulância é aberta, penso no adeus, mas ela fica grudada na minha dor, apenas olho, sinto que serão eternamente devorados pelo Casarão, e que a uma maneira de fugir, será como a minha.Deus-Ninguém, não sei para onde vou, sei que nunca chegarei a mim mesmo, tudo perdi porque nada pude ter, o sentido da esperança foi inundado, agora me resta...esta viajem sem volta.Deus-Ninguém, ore pelo ninguém que em mim restou, encha o Casarão com o ruído dos pássaros e dos animais em busca de suas presas, invada o Casarão e tente despertar o sono da alegria, nas únicas pessoas que acabei amando nesta vida...