A HISTÓRIA DO MENINO SEM CONTOS
Era uma vez um menino ávido por palavras. Alimentava-se delas, porém não as engolia, mas sim as derramava sobre o papel. Quanto mais palavras molhavam o papel, mais ele matava sua sede de escritor. Gostava de escolhê-las e de combiná-las como nos jogos infantis. Desde muito pequenininho, o brinquedo preferido eram as letras. Mesmo sem conhecê-las, amava-as.
Quando pegou intimidade com as palavras, a história foi de obsessão: vivia para escrever. Contava aventuras de uma turminha da sua idade que resolvia os crimes de uma cidade fictícia, de São Paulo. Amor, morte, vingança, solidariedade… criatividade: tudo isso enchia as páginas de vida e de movimento.
E a escola? Não enfrentava grandes tempestades em copo d’água. A Norma não o amedrontava com a sua aparência da Cuca lobatiana. Adquirira a esperteza de Emília e conseguira aliar as regras da escola com a criatividade de seus contos. Era, pois, um menino rico. Possuía muitos contos. Aquela fase de sua vida, quando começava a arrecadar palavras… ele a desfrutara incessantemente.
E então veio a universidade. O curso mais simpático aos seus olhos era Letras Vernáculas. Concentrou em Literatura e seguiu criando intimidade com pleonasmos, aliterações, metonímias, metáforas, hipérbatos, rimas, versos… No início do curso, tinha contos suficientes para contar vantagens e comprar sentidos sortidos para os enunciados. O seu cofre de imaginação estava farto. Encharcara, já, as laudas de muitas letras.
Entretanto, cada vez mais, o tempo para contar foi se restringindo, se restringindo, se restringindo… até que desapareceu. O menino não economizou contos: alguém lhe pedia emprestado para integrar a revista do Diretório Acadêmico, lá estava ele oferecendo; outro lhe solicitava algum para o painel da unidade, pois lá ia mais um; alguma lhe implorava um continho de presente, e ele lá não sentia dó? E para não encompridar a conversa, o menino resolveu contar tudo a um computador e… um belo dia este engoliu seus contos! Foi como uma notícia de falência! Perdeu seus contos. Ficou pobre. E a faculdade não permitiu que arrecadasse mais! Que lástima para um menino das Letras!
Ah! Mas ainda havia uma esperança! Sua imaginação estava guardada a sete chaves! Bem segura. Podia contar oralmente. A riqueza não estava perdida. A fonte não secara. O papel ainda beberia das suas palavras. Ele ainda se relacionava com o mundo e daí podia fabricar contos. Era só ter a tal imaginação. O menino de outrora não era um homem, como diziam por aí, afinal sempre carregaria o menino consigo. Isso ninguém entendia: se crescera de tamanho, deveria se comportar da maneira desenhada para aquele degrau de sua escalada. Qual nada! O menino estava lá, como uma gota de orvalho prestes a cair. Mas o caimento não significava desaparecimento. Em cada situação, o menino poderia reaparecer ou não. Nascimentos como o piscar dos olhos estelares: algumas piscadelas eram mais intensas e eram nessas intensidades que os nascimentos do menino se efetivava. Nascia e tornava à condição de orvalho nesse piscar.
E então veio um outro problema: outros contos em linguagem mais afastada em relação ao mundo do menino foram entregues para que lesse. Fruto de uma ocupação e não de uma produção natural dele, fruto de uma tradição que dizia o que ler em cada curso e não de uma paquera de dois cofres de imaginação que se encontravam e trocavam palavras. De fato, isso fez com que matasse o menino que insistia em nascer num piscar das estrelas. Queria que não fosse uma morte definitiva. Esperava renascê-lo mais vezes. Porém, aquela morte levara-lhe as palavras, levara-lhe o cofre, levara-lhe os contos.
O que faria? O homem não sabia ser somente homem. Queria sua meninez. Queria contos. Queria vida. Não conseguia arrecadar palavras com a linguagem seca que mal fixava as letras nas laudas. As letras caíam no mínimo movimento do papel. Diferente das palavras dos contos que molhavam o papel, de modo que o antigo menino enxergava vida nos enunciados. Perdeu essa capacidade: a de enxergar. Agora, ele, o homem, binoculava, por lentes menos imaginativas. Ficou desorientado, no meio de tanta orientação. Perdeu o amor pelas letras. A relação tinha se transformado em rotina.
Foi aí que o homem pensou no princípio. Resolveu que não ia mais teclar, mas sim desenhar as palavras. O costume tinha provocado uma tecnocriatividade: só encontrava um fio criativo quando estava com os computadores. Rompeu o bloqueio. Conversou com alguns meninos famosos na arte de molhar os papéis. Pegou um lápis e acariciou as letras. Imaginou sobre quando era menino. E o seu menino re-apareceu. Lá estava o sorriso dele novamente.
Então entendeu que as duas linguagens podiam estar no menino. Ele podia conviver com ambas. Ele não estava morto e nem morreria em definitivo, mesmo após sua morte física. O menino era a estrela. E a estrela tinha bilhões de anos e cintilava sempre. Nesse momento, uma estrela piscou para o menino, também homem, e ele sorriu. Estava, novamente, rico: arrecadava novas palavras e molhava os papéis, enfim.