Aquarela Inacabada
Acordara cedo. Entregue aos lençóis, coberto pela indolência, ainda bocejava indiferente ao bater incontido do pêndulo do relógio. Os olhos daqueles ponteiros pareciam vigiá-lo permanentemente, como um algoz carcereiro. Tempo imperfeito que desconhecia os segundos infinitos de sua agonia pessoal. As cortinas embaladas por uma suave brisa abriam-se ritmicamente como a dançar um bolero interminável. Quando invadidas pelas mãos da aragem, pareciam murmurar em doce consentimento àquele toque. A manhã mostrava-se completamente enamorada pelo sol, deixando-se acariciar sem qualquer pudor. Havia evidência dos sorrisos de felicidade daquele dia estampados pelas cores que banhavam a natureza. Podia-se mesmo sentir um frescor de primavera a adentrar pelo quarto. Por um momento foi seduzido pelo clima tão estranho à sua alma e sorriu. Sentiu-se tomado subitamente pelas fotografias do passado.
A casa no alto da montanha já era seu refúgio naquela época. Cinco anos havia se passado. No entanto, em sua memória, as imagens eram frescas como uma tela que acabara de ser pintada. Como acontecia todas as manhãs despertara com as mãos ansiosas. Mesmo sendo um artista amador e sabendo que jamais passaria de um pintor razoável, dedicava grande parte de sua vida aquela arte. E foi num desses tantos dias que a viu pela primeira vez. Enquanto coloria com um primeiro traço a aquarela branca, sentiu que era observado. Continuou seu trabalho, tentando esconder a inquietação que aquele olhar lhe causara. Compreendia agora a expressão que um dia ouvira: “olhos de mar”. Não que fossem azuis ou verdes...Era a profundidade daquele olhar que o remetia a tal comparação. Olhos brilhantes, como se estrelas deles deslizassem. Por segundos, manteve a respiração contida, como a não querer demonstrar que a havia notado. Um tremor percorreu-lhe todo o corpo, quando sentiu que ela se aproximava. Enquanto ela caminhava em sua direção, o vento desalinhava-lhe os cabelos, perfumando o dia.
- Bom dia, disse-lhe ela. A voz era delicada, mas firme. Tinha uma beleza incomum e traços marcantes faziam-na uma mulher interessante.
Demorou a reconhecer-se. Ele, sempre tão seguro, por momentos sentiu como se algo lhe tivesse amordaçado as palavras. Não sabia bem o porquê, mas ela o perturbava. Balbuciou um tímido “bom dia”. Quanto mais a olhava, menos compreendia os sinais que seu coração emitia.
Em poucos minutos, pincéis postos de lado, já conversavam animadamente. Falavam a mesma linguagem e, quando a palavra parecia inexpressiva, ela a tomava em seus lábios colorindo-a, fazendo-o ver sua habilidade para acariciar com emoção as letras pronunciadas em preto e branco.
E os dias se passavam, embora eles sequer notassem. Havia uma química irresistível a atraí-los. Já não se entendiam um sem outro. Davam-se vida e a cada dia descobriam que tinham muitas afinidades. Às noites eram compartilhadas com música, vinho e longas conversas. Mesmo em absoluto silêncio, algo entre eles continuava a ser dito.
Havia um beijo suspenso entre os lábios deles...Não tardou até que suas bocas percebessem isso. Beijaram-se...Então, fizeram-se um, amando-se, enquanto arrepios falavam entre seus corpos. Palavras de prazer que sussurravam em um idioma somente compreensível às carícias que gemiam em suas mãos.
Agora, a paisagem do presente se abre, açoitada pelo relógio cruel que insiste em lembrar-lhe da aquarela inacabada do seu sonho. Um dia, ele sentiu a fragrância do adeus num bilhete que parecia ter sido escrito às pressas: “Não sei se precisamos dar eternidade a esse instante, onde fui intensamente tua. Fui infinita em teus braços. Guarda meu retrato que começaste a pintar. Um dia, quando menos esperares, surpreenderei o destino, desvencilhando-me das amarras que mantêm minhas mãos longe das tuas”.
© Fernanda Guimarães