Um dia ...

Enfim, chegara o dia. Antes disso, houvera outro como aquele? Não. Nenhum que valesse a pena. Mas naquele, em especial, silêncio. Total. Sem nenhum arrulhar de pombos, nem ventos insistentes pelas frestas das janelas. Silêncio somente.

Levantou-se da cama.

Não havia ninguém por perto. Quartos vazios, salas vazias. Cozinha, geladeira, armários, estantes... Tudo. Tudo vazio. Isso não era algo comum. Resolveu sair para não alimentar a angústia que precede todas as esperas. E ficou fora a manhã toda.

Voltou para o almoço.

Haveria algo diferente naquela casa? Algo que oferecesse indícios? Flores? Um móvel fora do lugar? Uma toalha estampada com cerejas vermelhas? Um leve frescor em algum ambiente? Melhor seria procurar por um cômodo menos arejado, de preferência bem abafado, quente, talvez fervilhando... Cheirando a algo cozido, assado, frito... Pasteizinhos... Adorava pasteizinhos fritos. Todos na casa sabiam disso. E gostava também de chocolates, daqueles que cobriam bolos, completamente marrons, quase roxos – como a terra em que costumava pisar.

Sentou-se à varanda. Não sabia mais quanto tempo se passara entre o não-almoço e os seus pensamentos... Olhou aquela imensidão de terra roxa, tão fértil, como dizia o avô... Cheirava à terra molhada, mas pareceu-lhe seca, deserta... Olhou o céu... Amarelo. Como a sua casa... E se deu conta de que sempre morara em casas de cor amarela. E que, nessas casas, nunca houvera comemorações de dias como aquele.

E ali ficou.

Em sua mente nada de mais... Só lembranças.

Todas as lembranças de dias não comemorados. E, de repente, ouviu barulhos. Passos. Conversas, murmúrios, vozes que, inicialmente distantes, pareciam cada vez mais próximas.

Correu.
Abriu a porta da sala.
Coração aos pulos.

O chão encerado e forrado de jornais, a mãe e as tias com rolinhos nas cabeças, a música na vitrola, no último volume... Crianças correndo, telefone tocando, campainha endoidecida... E gente entrando sem nem pedir licença... Sentiu uma certa tontura. Seria possível isso? Antes, silêncio e ausência. Agora, sons, multidão... E cheiros... Sim. Poderia jurar que estava sentindo cheiro de pasteizinhos fritos e de chocolate derretido... Chegara a escutar a mãe gritando com a empregada porque o ponto da cobertura para o bolo não era aquele. “Vamos ter de derreter mais chocolate!” – dissera a mulher, quase esbravejando.

Correu à cozinha.

Tentou falar com a mãe. Mas esta, segurando o bolo recém tirado do forno, gritava a plenos pulmões para que todos abrissem espaço e ela pudesse passar...

Foi para o quarto. As primas estavam todas lá. Uma mais bonita que a outra. Algumas deitadas sobre as camas meticulosamente arrumadas; outras no peitoril. Reparou nas colchas. Todas brancas, rendadas. Olhou para as janelas. Abertas. As primas sorriam. E o vento, assanhado, bagunçava-lhes os cabelos, do mesmo modo como faziam com as cortinas... Achou aquilo poético e saiu, quase deslizando, pelo corredor, pensando na poesia do momento... Eis que outro vento, mais imponente, ameaçou-lhe derrubar todas as crenças... As imagens de santos que a mãe insistira em espalhar pelos quatro cantos da casa estavam todas dependuradas, ao sabor daquele vento terrível...

Tentou lutar contra o vento. Correu para fechar as janelas. Quase perdeu o fôlego.... Mas se lembrou da outra imagem. A da santa padroeira. Na parede da sala. Foi verificar. A imagem permanecia fixa, como sempre estivera.

Continuou, então, seu passeio pela casa...

Na sala de jantar, a mesa posta. As louças de porcelana. Tudo muito lindo! Os copos, as taças (de cristais!) brilhando, os guardanapos bordados, as flores... Muitas flores!

Olhou em volta. Mais pessoas chegando, mais música, barulho, gente, gente, gente...

E o som, e a música, e o cheiro, e as imagens...

Tudo se misturou.

Saiu, em meio à confusão...

Olhou para o lado.

Estava de volta à varanda... Fria... Como seu pensamento...

E não se lembrou de mais nada...

Devia ter dormido no melhor daquela comemoração...

Olhou para o alto.
Cadê todo mundo?
Queria gritar...

E viu o céu... Não mais amarelo...

Agora, estava escuro.

Jogou-se ao chão. Queria sentir a terra fértil. A terra... Sua cor continuava roxa... Mas agora...

Agora cheirava à bolor...

Sentiu uma dor profunda. Inexplicável.

E se lembrou dos seus 15 anos...

Era seu aniversário...

E que diferença isso fazia?

Todos os seus não mais ali estavam...

Portanto, não havia cerejas, chocolates, pastéis, louças brilhantes, músicas... Todos estavam mortos. Não havia o que comemorar.

(Adriana Luz)

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Adriana Luz
Enviado por Adriana Luz em 20/07/2008
Reeditado em 07/12/2008
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