O Cavaleiro Negro

A noite estava silenciosa. Nada se fazia ouvir por entre a escuridão das árvores que ladeavam a estrada. Só o som metálico das patas do meu cavalo batendo no chão de pedra passava por entre as frias paredes de meu elmo, e minha respiração entrecortada fazia eco na sinistra quietude.
A viagem através de terras de vários senhores havia sido árdua, com pouca água e raro alimento. E frio. Muito frio, que cortava a pele, mesmo debaixo de muitos casacos e mantas. O ar se condensava assim que saía das bocas, minha e do meu cavalo, e as mãos tremiam debaixo da pesada luva de metal gelado. E a noite seguia, com o frio açoitando cada vez mais vorazmente meu corpo errante.
Chegando às portas de um pequeno vilarejo, saltei da anca de meu alazão e bati na pesada porta. A resposta a meu chamado veio na voz mal humorada de um porteiro, que certamente não gostara nem um pouco de ter que sair de sua cabana e deixar seu fogo na lareira para cumprir seu dever. Depois de alguns resmungos e algumas moedas trocando de mãos, ouvi o som metálico das correntes sendo arrastadas e as trancas removidas e pude entrar na pequena vila.
Dirigi-me à estalagem à esquerda da rua, conduzindo meu cavalo pelas rédeas e o amarrei no pilar que havia na entrada do lugar. Entrei e logo fui surpreendido por uma onda de calor e gritos e risos aos quais já não estava mais acostumado. Entrei lentamente com meu elmo sob o braço direito e me sentei a uma mesa em um canto. A mesma surpresa que me abateu quando entrei também atingiu os que freqüentavam a taberna naquele momento.
Minha figura de fato era de causar algum espanto. Eu era alto, com cabelos louros caindo nos ombros e uma barba quase ruiva me cobrindo o rosto, agora descoberto pelo grande elmo prateado, enfeitado com uma pluma dourada no alto. O resto de minha armadura era também prateado e brilhava à luz das tochas e velas que iluminavam o lugar.
Eu havia sido durante muitos anos Paladino das Terras do Norte, mas abandonei minha missão, jurada perante meu mestre Haldar, para cumprir uma outra missão, mais nobre e importante que defender as terras sob nosso controle da invasão dos seres da escuridão. Era a missão imposta a mim não por mestre ou general, ou mesmo Padre ou senhor. Era a missão mais importante que um homem tem que cumprir durante sua vida. A missão do coração.
Eu desertara do exército de Haldar oito meses antes daquela noite gelada naquela estalagem e iniciara minha busca pelo amor que me faria finalmente descansar de todas as batalhas.
Eu havia conhecido a Princesa Luna exatamente um ano atrás, no mesmo dia, mas em um lugar bem distante dali. Ela e seu séquito estavam de passagem pelas terras do norte para se encontrar com um ermitão que dizem que vive no extremo norte do mundo, onde a terra é tão branca pela neve que se confunde com as nuvens do céu.
A princesa passou por nossos domínios e nós a escoltamos e abastecemos com água e alimentos, mas ela não ficou satisfeita e, como que por brincadeira, levou consigo meu coração e minha paz de guerreiro. No exato momento em que meus olhos pousaram na sua pele morena e seus olhos escuros, um calor se apoderou de mim como nunca antes acontecera em qualquer batalha. E não tardou a se revelar para mim meu destino. Minha morte deveria ser ao lado de minha Princesa Luna, aquela que com um olhar roubara meu coração.
Arrumei meus pertences e meu destino me levou naquele momento para aquela estalagem naquela noite fria.
O dono do lugar me estendeu um copo feito de cerâmica crua cheio de vinho. Só naquele momento notei o quanto estava sedento e precisando de vinho e um pedaço de pão e carne. Tomei todo o copo de um gole e pedi mais. No terceiro copo e tendo à minha frente um prato com pão preto e carne de porco salgada, estava me sentindo mais aquecido e pude relaxar os músculos.
Chamei o homem atrás do balcão, que era gordo e tinha um grande bigode cujas pontas caíam pelas bochechas, e disse:
_Procuro uma princesa chamada Luna e ouvi que ela vive nesta região. O senhor sabe onde encontrá-la?
Notei que o rosto do homem perdeu de repente toda a cor e ele começou a gaguejar, mas pude ouvir em suas frases entrecortadas:
_Loucura!...Rei Sol... Ninguém voltou vivo...
Fiz um sinal para o homem e pedi que se acalmasse e que repetisse com calma o que acabara de dizer:
_O senhor é louco - disse o Gordo, já mais calmo - A Princesa Luna é prisioneira no castelo acima da montanha ao leste, propriedade daquele que se auto-proclama Rei Sol, um tirano cruel e vil. Ninguém que o tenha desafiado sobreviveu a uma luta.
De repente estava interessado em conhecer aquele tal Rei Sol. E, já restaurado da longa viagem, pulei no dorso de meu cavalo e parti em direção do castelo da montanha reencontrar minha Princesa. O vento gelado da noite estava sendo substituído por uma fria e úmida neblina da madrugada, e logo horizonte começou a pegar fogo. Um novo dia estava nascendo.
 
Chegando próximo às portas do castelo, me deparei com três soldados, com escudos brancos pintados com um sol negro. O maior deles levantou a mão e disse:
_Alto, forasteiro. Estas são as terras pertencentes ao Grande Rei Sol. Deves dar meia volta e retornar para o lugar de onde vens.
Puxei levemente as rédeas de meu cavalo e ele parou. Propositalmente soltei uma forte risada que fez os soldados ficarem certamente furiosos comigo. Imagino que eles não estavam acostumados a serem desafiados daquela forma. Rapidamente as três espadas estavam nas mãos de seus donos e eles se prepararam para o ataque.
Com outro puxão nas rédeas de meu companheiro de viagem, desta vez um pouco mais forte, meu cavalo saltou e ficou em pé nas patas traseiras, relinchando ameaçadoramente para nossos três oponentes.
Um momento depois eu avançava sobre os três com minha espada em riste e preparando meu pesado ataque a cavalo, e na primeira estocada minha lâmina perfurava o ombro do soldado que estava à esquerda, que caiu ruidosamente, manchando de sangue a relva que ali crescia. Por causa de minha honra de Paladino, saltei do meu cavalo e me preparei para enfrentar os outros dois soldados em posição de igualdade.
O segundo lutador, que mais parecia um bloco de rocha maciça, com cabelos ruivos presos em duas tranças mal feitas nas costas, e que carregava um daqueles grandes machados de duas lâminas, correu em minha direção, gritando palavras em uma língua que eu não entendia. A pesada lâmina de seu machado passou assoviando ao lado de minha orelha e teria se enfiado em minha cabeça se eu não estivesse saltando para o lado naquele exato momento.
Antes mesmo de conseguir me levantar do chão o segundo golpe já voava sobre mim e foi aparado pelo meu escudo, com o metálico e assustador ruído que faz o aço quando se choca. Ainda assim, a lâmina do machado chegou a apenas um ou dois centímetros do meu rosto, porque o golpe desferido pelo guerreiro possuía muita força.
Eu não conseguia imaginar uma maneira de derrotar aquele homem. Eu precisava ficar esquivando de seus golpes, que eram esperadamente fortes, mas inesperadamente rápidos para um lutador com aquele tamanho.
Enquanto o machado voava em minha direção cada vez mais perto, notei que o terceiro guerreiro, que até aquele momento estivera somente observando a luta, como que esperando sua vez de lutar, estava desembainhando sua espada enquanto caminhava em nossa direção.
Vislumbrei naquele ato a minha oportunidade de virar o jogo. Subi em um pequeno barranco e, aproveitando que o terceiro soldado estava fora do campo de visão do homem com o machado, pois vinha de trás dele, saltei em direção dos dois e, exatamente como estava esperando, fui seguido de perto pelo grande machado de lâmina dupla.
Acontece que eu estava esperando o golpe e consegui me desviar, mas o homem da espada não teve a mesma chance.
A grande lâmina entrou na cabeça do homem, que mal teve tempo de gritar e arregalar os olhos. No mesmo momento o atacante, surpreso por ter acertado o poderoso golpe bem em seu parceiro, ficou atônito. Aproveitei aquele único momento de hesitação e cravei minha espada em seu pescoço, bem na divisória de sua armadura.
O homem soltou um gargarejar e caiu para trás, soltando o cabo de seu machado, ainda pregado na cabeça aberta do companheiro. Eu ofegava, a luta havia sido dura e eu certamente só estava vivo por ser muito sortudo ou muito louco, pois há poucos segundos tinha pulado em direção à morte certa.
Caminhei lentamente em direção ao corpo do soldado morto e retirei o pesado machado de sua cabeça. Apoiei a arma no ombro e caminhei na direção dos portões.
Àquela altura várias pessoas estavam escoradas na borda da muralha, assistindo à luta. Confesso que, se eu não fosse um dos participantes, teria achado também muito divertida a situação e estaria parado, assistindo.
Chegando de frente ao portão preparei o machado e girei uma duas vezes sobre meu próprio corpo para ganhar impulso. Depois, soltei a pesada arma em direção ao grande portão de madeira. A lâmina se cravou fundo na madeira e o machado ficou lá parado, pregado, como um sinal das minhas intenções.
Alguns minutos depois, um grande homem apareceu em uma abertura na muralha acima do portão. O homem ostentava um manto azul muito claro com pequenas manchas brancas, que simulavam um céu iluminado. Sobre a cabeça trazia o que parecia ser uma coroa, com raios imitando os raios do sol. Não precisei de mais que um olhar para descobrir quem estava à minha frente. O Rei Sol disse:
_Quem ousa atacar meus soldados nos portões de meu palácio? Não sabes que a punição é a morte?
Respondi, sem hesitar:
_A morte não me traz medo. Eu já morri várias vezes. Sou Halmir, filho de Hadir, Capitão do terceiro batalhão de Paladinos do Norte. Sirvo ao Grande Haldar, mas venho em meu próprio nome reclamar a liberdade da Princesa Luna. E o exijo imediatamente.
O homem riu ruidosamente e sua risada fazia meus nervos todos aflorarem à pele. Minha mão suava e tremia de ódio por aquele homem que se auto proclamava rei e escarnecia daquela forma de mim, minha missão e meu mestre. Jurei naquele momento para mim mesmo e para meus ancestrais que, mesmo que minha vida se acabasse naquele dia eu levaria comigo para os portões de Arjun o sangue daquele homem. Com a voz tremendo, respondi:
_Eu te aviso, Rei Sol, liberta a Princesa Luna imediatamente ou provarás da minha espada e meu ódio.
Mas ele continuava a rir e dizer coisas em tom de sarcasmo para seus nobres, que riam ao lado dele. O ódio que crescia em mim somente não explodiu em uma tempestade de fúria porque, em uma das janelas altas da muralha vi um rosto que me trouxe paz e calma. Era o rosto moreno de minha Princesa Luna, que me olhava com lágrimas nos olhos e as mãos unidas, como que em oração. Naquele momento tive certeza que seu coração também havia sido tomado pelo mesmo furor que me atacara da primeira vez que nos vimos.
Uma pequena porta, ao lado do portão principal, se abriu e por ela saíram vários soldados que me cercaram. Entre eles veio caminhando o homem que eu havia desafiado. Ele vinha fortemente armado e com uma imponente armadura dourada, com um sol pintado no peito e no escudo. O homem se postou à minha frente, no centro do círculo formado por seus soldados.
_Desejas me enfrentar em batalha por uma mulher? - ele disse - Que assim seja!
E antes que eu pudesse notar, sua grande espada já estava voando em minha direção e somente não levei um golpe em cheio no crânio porque tive tempo de levantar o escudo para o alto da cabeça. O som da lâmina batendo no escudo foi como um trovão no início de uma tempestade. E o golpe foi rapidamente seguido por vários outros antes que eu pudesse sequer tirar minha espada da bainha.
Quando finalmente pude me preparar para a batalha meu escudo já estava amassado e quase não se podia reconhecer a águia que havia nele. Por um momento olhei nos olhos de meu inimigo e não vi um ser humano ali. Seus olhos brilhavam com uma força estranha, sem luz, e cheia de ódio. E quando nossas espadas se cruzaram no ar a terra pareceu tremer ligeiramente e um vento frio soprou do leste.
Lutamos durante várias horas e meu oponente parecia ficar maior a cada minuto que passava. Parecia que ele se alimentava da minha fraqueza, da minha hesitação em batalha e durante vários momentos a derrota passou muito perto de mim. Sua espada descia violentamente, ora defendida por meu escudo ora por minha própria espada.
Meus braços começavam a doer, minha visão estava lentamente ficando mais turva a cada golpe trocado e eu não vi a ponta da espada de meu oponente vindo em direção às minhas pernas. A dor quase me fez ajoelhar, mas eu me segurei firme. Haldar me ensinara muito sobre suportar a dor durante meu treinamento. A lâmina tinha aberto um ferimento na parte interna da minha coxa e meu sangue manchava o chão abaixo de mim.
E então, quando recebi em cheio no meu escudo um pesado golpe, senti minhas pernas perderem o chão e caí.
Deitado de costas no chão duro vi meu inimigo se aproximar. Suas pernas estavam do lado de meu corpo e ele, do alto, olhava para mim, sorrindo. Segurou a espada com a ponta para baixo e a levantou bem acima da cabeça. Naquele momento vi que deixaria minha missão e meu juramento sem cumprir. Fechei os olhos e esperei pelo golpe que acabaria com minha vida.
Mas alguma coisa me tirou o torpor que me invadira. Uma voz doce que era quase uma música, mas estava carregada de tristeza e desespero. Abri os olhos e vi uma cena que nunca poderia esquecer: minha Princesa estava parada bem perto de mim, ajoelhada e chorando. Aquela visão pareceu encher meu corpo de vida e de forças novamente. Mas muito rapidamente pude ouvir o som da minha morte.
A lâmina da espada do Rei Sol estava baixando em minha direção, e eu já quase conseguia sentir o gosto do meu sangue sendo despejado. Mas em um movimento quase instintivo, sem pensar, levantei meu braço. A ponta da espada foi levemente desviada pelo escudo e não penetrou em cheio em meu peito, mas a dor que me atacou foi lancinante. A espada trespassara não somente meu escudo, mas também, ficando cravada no aço de minha armadura, a poucos centímetros de meu coração.
Meu braço esquerdo estava perdido, mas eu ainda estava vivo e tinha que agir rapidamente antes que outro golpe acabasse de vez com minha vida. Assim, no momento que o homem puxava a espada, e retirando forças não sei de onde, rolei com o corpo para o lado, e me levantei. O rei Sol pareceu aturdido, como se não esperasse alguma mudança em sua vitória já conquistada.
E me aproveitando daquele segundo de hesitação eu corri em sua direção enquanto preparava um forte golpe com minha espada. A lâmina atacou pesadamente a arma do meu inimigo, que não estava preparado para se defender, e sua espada voou de suas mãos. Quase no mesmo segundo eu dei a volta e estava de novo frente a frente com meu oponente e minha espada já voava na direção de sua garganta enquanto nossos olhares se cruzavam uma última vez. No momento seguinte seu corpo caía aos meus pés.
Minha pesada espada me escorregou das mãos e eu caí de joelhos no chão manchado de sangue. Esperava a qualquer momento que um dos soldados que me cercavam acabasse com minha vida, já que eu tinha matado seu senhor.
Mas ao invés disso eu ouvi gritos de alegria e satisfação. E naquele momento percebi que na verdade minha missão tinha sido muito maior que resgatar minha Princesa, mas sim libertar um povo de um rei que não só era louco, mas um tirano.
E, para coroar minha glória, a Princesa Luna correu em minha direção e me abraçou. E pela primeira vez senti seus lábios, que me levaram mais longe do que já tinha viajado em toda minha vida. Comparar aquele beijo doce com o sabor do mel não seria suficiente para expressar como foi maravilhoso aquele momento.
Lentamente nos levantamos e caminhamos em direção a meu cavalo. Estávamos prontos para partir. Minha missão estava completa, eu havia vencido.
 
Mas no momento em que eu ajudava a Princesa a subir no cavalo algo aconteceu. Ouvi um som estranho, como um zunido, e depois um grito vindo da minha amada. Imediatamente olhei para trás e vi algo que nunca imaginei que pudesse existir.
Um homem saíra pelos portões do castelo e disparara algo que parecia uma corda, que se amarrara no braço da Princesa e a estava arrastando. O homem estava vestido todo de preto, não com armadura, mas apenas com roupas pretas, cobrindo todo seu corpo, inclusive a cabeça. Somente seus olhos eram visíveis debaixo de sua roupa estranha. Atrás dele, presa às suas costas, eu pude ver o que se parecia com uma espada. Mas o que mais me chamou a atenção foram os olhos do guerreiro. Eram olhos pequenos e talvez puxados, como os olhos dos povos que vivem além do horizonte.
E ele estava tentando tomar minha Princesa de mim, novamente! Retirei minha grande espada da bainha na minha cintura e corri em direção ao homem. Ele não vestia armadura nem trazia escudo e minha espada certamente o cortaria ao meio. Mas no meio do caminho uma dor indescritível me atacou e eu não pude mais correr. Quando olhei para meu corpo, vi vários ferimentos no peito, nos braços e nas pernas, causados por pequenos objetos de metal que estavam cravados em minha carne. Eram como estrelas de metal, mas eu nem mesmo pude ver de onde vieram.
Minha Princesa continuava gritando por socorro e eu precisava me levantar e atacar aquele homem vestido de preto. Apoiado na espada eu me levantei, lentamente. Mas quando olhei na direção do homem, vi somente a Princesa amarrada e amordaçada, encostada em uma parede. Antes que eu pudesse notar um vulto negro voava em minha direção e os pés do guerreiro, bem no meio de meu peito, me jogaram para trás.
Eu não caí no chão novamente porque me apoiara em uma árvore, mas antes que eu pudesse me preparar para contra atacar outra corda veio em minha direção e me amarrou à árvore. Eu estava imobilizado e preso enquanto o homem caminhava lentamente para minha princesa e a colocava sobre os ombros. Antes de desaparecer dentro do castelo, ele olhou em minha direção e eu pude ver um sorriso de deboche em seus olhos.
O desespero se abateu sobre mim. Os ferimentos por todo o meu corpo doíam insuportavelmente e meu sangue escorria por minhas pernas até o chão e eu nada podia fazer enquanto aquele estranho homem levava minha Princesa para longe. Ainda mais depois de ter sofrido tanto para conquistá-la.
E enquanto estes pensamentos de desespero inundavam minha mente, uma fúria me invadiu, e subitamente eu me vi carregado de ódio e rancor por aquele guerreiro oriental, tamanha vontade de ver seu sangue jorrar, que senti minhas mãos se apertarem com uma força que não era minha e eu gritei. Com um misto de dor e fúria eu agarrei as cordas que me prendiam à árvore e comecei a fazer força para inclinar meu corpo para a frente. E logo depois ouvi as raízes da árvore estalarem e começarem a sair da terra.
Consegui afrouxar os nós da corda negra e me soltei de minha prisão temporária. Imediatamente corri na direção em que o guerreiro tinha ido, ofegante e deixando um rastro de sangue por onde passava. Quando passei pelos portões do castelo não se podia ouvir qualquer som vindo de suas instalações. Todos os criados e soldados haviam corrido para a pequena vila abaixo da montanha para comemorar sua liberdade. Por um momento pensei em como o dono da estalagem estava me agradecendo naquele momento.
Um som vindo de um local mais adiante chamou minha atenção e corri em sua direção. Quando cheguei ao local de onde imaginei ter vindo o som, espantei-me ao ver uma alta e estreita escada de pedras, e bem abaixo um pequeno porto, mais parecido com uma doca, e um imenso mar que chegava ao infinito. E a certa distância da terra estava um barco com velas entrecortadas e curvadas, que ostentavam em seu tecido alguma gravura em idioma que eu desconhecia naquele momento.
O barco já estava fora de meu alcance e se dirigia para o leste, onde nasce o sol. E eu não precisava ver Luna para saber que ela estava naquela embarcação.
Caí de joelhos no chão, e minhas lágrimas se juntaram a meu sangue na poça que se formou abaixo de mim.
 
Meu cavalo caminhava lentamente montanha abaixo. Cada passo dele era mais doloroso que o anterior e foi com imenso alívio que alcançamos o pesado portão da vila que existia ao pé do monte, de onde se podiam ver as torres do castelo que eu há pouco deixara. Quase sem forças, esmurrei o portão de madeira e caí nos braços do porteiro, agora um pouco mais bem humorado do que estivera na noite anterior.
O homem, que tinha uma grande barba branca e muito mal cuidada, me arrastou até a estalagem do lado esquerdo da rua. Uma vez dentro do estabelecimento, senti o calor de uma lareira e de um grande copo de vinho. Muito vagamente senti as peças da minha armadura serem retiradas e uma mão fina e delicada lavar meu corpo sujo das batalhas e limpar meus ferimentos.
Vários dias se passaram antes que eu tivesse forças para me levantar da cama em que havia sido colocado e onde havia sido alimentado à base de pão e sopas, e por vezes um copo daquele vinho que trazia calor e aconchego quando entrava pela minha garganta.
Quando finalmente pude me levantar e caminhar, notei que o inverno havia dado lugar a uma primavera florida e que crianças brincavam no pátio da vila. E notei que uma alegria tomava conta de todo o povo, uma alegria que não estava ali quando eu cheguei. Uma alegria que não chegava nem perto de mim. Eu sentia somente desilusão e dor por não poder estar com minha Princesa. Todas as flores para mim eram negras e cheiravam a morte.
Minha armadura e minha espada estavam em um canto do meu quarto, perfeitamente arrumadas em um embrulho para que eu pudesse carregá-las sozinho. E em uma manhã clara e ensolarada eu arrastei o embrulho até meu cavalo e o joguei em seu lombo. A simples visão daquela águia dourada no peito da armadura me causava dor imensa, e por isso não ousei olhar.
Caminhei puxando o animal pelas rédeas até o ferreiro local. Lá chegando, expliquei com detalhes o que eu queria que ele fizesse e me sentei em um banco de madeira perto de sua porta para esperar. De olhos fechados eu podia ouvir seu martelo e sua forja trabalhando a todo vapor. Por uma boa paga não há nada que não se faça. E o homem fez seu trabalho perfeitamente bem e muito rapidamente.
Não sei dizer exatamente quanto tempo ele demorou para terminar o trabalho, mas em um determinado momento ele me chamou para dentro de sua oficina. Quando entrei uma surpresa me atacou. O que eu via era exatamente o que eu havia imaginado para mim, e expressava exatamente o modo como eu estava me sentindo depois daquelas batalhas, onde venci e fui derrotado ao mesmo tempo.
A armadura estava montada bem no meio da oficina. Era toda negra, sem um único espaço de qualquer outra cor e não tinha qualquer adereço ou imagem gravada em seu corpo e no elmo apenas uma pena negra despontava.
Quando vesti minha nova armadura senti uma onda de alívio e satisfação, que quase disfarçaram a dor que eu sentia pela perda e derrota que havia sofrido semanas antes. Ao caminhar eu lentamente senti que alguma missão me esperava em alguma curva da vida e que havia motivo para continuar a caminhar. E saí da oficina do ferreiro com quase um sorriso no rosto.
Minha identidade havia finalmente se revelado para mim mesmo. Eu não era mais Paladino das Terras do Norte, não era mais cavaleiro nobre que ostentava a águia dourada de Haldar em meu peito. Eu era o guerreiro moldado pela injustiça e pela dor, era meu próprio vingador. Era meu protetor e meu carrasco.
Nascia naquele momento o Cavaleiro Negro.
 
Fábio Codogno
Enviado por Fábio Codogno em 19/07/2008
Reeditado em 28/04/2009
Código do texto: T1087170
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