Cânticos Gregos/ capítulo II
Capítulo II
conseguiu Orfeu resgatar Eurídice? coragem leitor para conhecer o que o mito realmente nos narra desceu ao inferno Orfeu no Hades sentiu o suplício de Tântalo rei da Lídia ele que era filho do próprio Zeus e da ninfa Pluto homem e deus revelou aos mortais os mistérios divinos ofereceu-lhes néctar e ambrósia e diz-se sacrificou o próprio filho Pélops para pôr à prova a adivinhação dos habitantes do Olimpo ó rei da Lídia o teu castigo será terrível e eterno e saberás que Pélops ressuscitou por acção de Hermes a quem se erguiam estátuas nos cruzamentos e bermas dos caminhos…mas não nos desviemos de Orfeu e da missão vital de resgatar a mulher amada da morte eis que a lira apazigua as Fúrias e aquela se liberta do mundo subterrâneo a face deífica parece mais bela que nunca nenhuma sombra resta nos seus olhos esquecerá como Ulisses o sofrimento absurdo de Sísifo sim a felicidade voltará a agarrá-la em cada dia preenchido pela profusão luminosa das alegorias como diziam os latinos ela voltará aos campos solares na Trácia vejo-a caminhar entre as árvores com Orfeu e os risos ecoam pelos prados e os rios até ao montes Parnaso de onde brota a fonte Castália ó mortais o quadro idílico do amor carnal nos comove cantará Ovídio o mito terá um fim feliz? ó mortais a nossa imaginação é fértil queremos afastar a dor mas o destino não perdoa Átropo está atenta e inflexível corta o fio à vida Eurídice ainda não alcançou a luz percorre com derradeiros passos o reino da morte o mundo dos vivos está tão próximo apenas mais um passo breve mínimo apenas mais um passo mínimo talvez um pequeno salto para o outro lado das portas de Hades os dedos ansiosos dos amantes se prendem nos olhos já a felicidade brilha um pequeno passo para a vida a quem desceu à morte como é belo o que nos espera além desta linha ténue! Orfeu desceu ao inferno para trazer de novo Eurídice à vida cumpriu-se o presságio mas ó mortais serei agora também eu breve! com uma condição nunca olhar para trás e Orfeu olhou no comprimento do seu braço estendido para a amada antes de ela ter saído das Sombras naquele momento último e decisivo ó dor insuportável de te perder para sempre quando te olhei nos olhos fixos e tu sem sentidos escapaste já em sombra pelas múltiplas sombras da eternidade ó deuses que destino! sejamos de facto breves e cínicos na tradição grega o fim está traçado Orfeu regressa à querida Trácia e morre mais tarde despedaçado o seu corpo pela inveja das mulheres…a cabeça foi lançada ao Hebro recolhida em Lesbos a lira está entre as constelações celestes os membros sepultados no sopé do Olimpo…
“ O mito é o nada que é tudo!” (Fernando Pessoa)