Nunca mais como essa

Bom demais pra ser verdade! Como é que uma morena daquelas ia dar bola pra mim? Lindíssima, corpo magnífico, a pele, os olhos, o cabelo, a boca, tudo perfeitinho. Estava caidona por mim. Bem, pensei eu, já que ela está querendo... por mim tudo bem.

No apartamento dela, jantar à luz de velas. Tudo impecável, um clima magnífico. Ainda não podia acreditar em tudo aquilo. Justo comigo. Tanto homem no mundo e ela foi se interessar logo por mim. Aquela escultura na minha frente, pedindo para repetir o pecado original.

- E então, como está o jantar?

- Maravilhoso, você é mesmo uma mulher surpreendente. Além de tudo, cozinha muito bem.

- Obrigada. Além de tudo o quê?

- Além de tudo, tudo. Você é simplesmente fascinante, em todos os aspectos.

- E você nem conhece todos ainda...

- Mas adoraria conhecer...

- Calma, tudo na hora certa

- Claro, claro. Não vamos fazer nada que você não queira...

- E depois, tenho muito interesse por você, mas não quero atropelar as coisas.

- Ótimo. Ahmm... Desde quando você mora nesse apartamento?

- Desde que vim morar aqui com o meu marido. Há uns cinco anos.

- Marido? Você não disse que era casada!

- Faria alguma diferença? Você viria de qualquer jeito.

- Pra falar a verdade, viria mesmo. Não tem como não atender a um pedido seu. Você me hipnotiza.

- Você é que me hipnotiza.

Ouvir isso daquele mulherão foi o maior elogio que eu já tivera. E ainda casada, o que significava que a chance de isso "vazar" era quase nula. Papo vai, papo vem, não agüentei e, idiota, tive que entrar nesse assunto. A gente sempre gosta de saber quem está levando o chifre.

- E o seu marido?

- Não sei se você conhece. Ele se chama Ivan.

- Não conheço muitos Ivans...

- Ele é policial.

- Ivan, o Terrível?

- Isso. Você o conhece?

- Sim, conheço de vista.

Pausa aqui para falar sobre Ivan, o Terrível. Eu havia estudado com o cara no ginásio, mas não era da minha turma de amigos. Via ele vez ou outra, mas nada além de um cumprimentozinho curto. O sujeito era praticamente uma figura geométrica. Tinha a altura igual à largura. Um quadrado. Era o que se poderia mesmo chamar de guarda-roupas. E adivinha o porquê de ele ser apelidado de "O Terrível"? Ele era pior do que o original, pode apostar. E eu ali, quase transando com a mulher dele.

Eu estava mais ou menos nesse ponto quando senti aquela boca carnuda no meu ouvido. Nessa hora não importava se era Ivan, o Terrível ou se era Capeta, o Rei do Inferno. Fui. Alguém disse que o homem só tem sangue pra fazer funcionar uma cabeça de cada vez. Concordo plenamente.

Era uma confusão de braço, perna e língua naquela cama. Parecia que tinha umas oito mulheres. O verdadeiro paraíso terrestre buscado por todos durante eras da história dos prazeres carnais.

- Oi amor, cheguei!

- Quê?

- Ele chegou!

- Cê tá maluca. Ele não tava de serviço hoje? E agora?

- Tava. Sei lá o que que deu... Já vou!

- Ah meu Deus. Tô morto.

- Eu vou lá distrair ele. Dá um jeito aí.

- Dá um jeito aí, como? Puta que pariu. Tô morto, tô morto...

- Já tô indo amor, tô saindo do banho...

- Cacete, se eu escapar dessa nunca mais como mulher casada. Nunca mais como mulher nenhuma! Se eu me fingir de viado, será que ele acredita? Que merda, tô morto, tô morto...

Ela se enrolou na toalha e saiu do quarto.

- Que que eu faço... que que eu faço? Ai minha mãe, se eu sair dessa vou na missa 7 dias seguidos. 30. Melhor, um ano. Tô morto... Vou tentar isso... Cadê meu celular? Putz, tá todo melado.... Alô! É do oitavo distrito? Tem um ladrão invadindo o meu apartamento. Eu tô trancado no quarto. É... tô ouvindo eles lá na sala... Não... eu tô escondido... vem rápido pelo amor de Deus! Na rua tal... edifício tal... apartamento tal... Por favor! Rápido!

Um minuto depois...

- Na escuta, câmbio... O quê? Aqui no meu prédio? Câmbio... Conheço o morador, estou ciente, câmbio... Já estou me dirigindo para o local, câmbio... Perfeito, câmbio final. Amor! Estão invadindo o apartamento do velhinho do 204. O pessoal tá vindo, vou lá pra dar cobertura.

- Cuidado, amor. Esses bandidos são perigosos.

- Pode deixar, depois eu passo aqui antes de ir pra rua de novo.

Blammm! A porta.

- Ave Maria... cadê minha calça? Pai nosso... meu outro sapato? Salve rainha... rápido, rápido... Creio em Deus pai... Vombora, vombora...

- Agora não precisa se apurar, ele vai demorar um pouco.

- Tô sabendo. Logo ele tá de volta.

- Ele foi atender uma ocorrência.

- Você disse que ele não vinha...

- Desculpa, não sei o que houve. Ele raramente aparece em casa quando tá de serviço.

- Vou embora, depois a gente conversa. Tchau!

- Me dá um beijo.

- Tchau!

Eu estava completamente grogue. Não sabia se rezava, se gritava ou se me atirava pela janela do corredor. Apertei o botão. Esperei o elevador chegar. Entrei e apertei no térreo. Salvo pelas mãos divinas.

- Como é que eu vou fazer pra pagar todas as promessas? Mas tenho que pagar. Essa foi demais.

O elevador continuou descendo e parou no segundo. Abre a porta.

- Sobe?

- Não, tá descendo.

- Ô cara, que cê tá perdido aí?

- Opa, tô aí visitando um amigo meu. E você? Só na folga?

- Não eu moro aqui.

- Ah, tá...

- E você? Tá fazendo o quê da vida?

- Na mesma vidinha ainda, nada de diferente. Mas beleza... vou indo... não dá pra alugar o elevador.

- Sim, sim, tudo certo. A gente se fala.

- Com certeza. Abraço.

Isso foi a coroação. O cara de pau do século. Depois de tudo ainda topei com o sujeito na descida do elevador e passei batido. Praticamente um James Bond. Uma mistura incomum de técnica, inteligência e ousadia. Me senti levitando quando bati o portão atrás de mim. Renascido. Jurei nunca mais ver aquela mulher na vida.

O celular.

- Alô!

- Quem está falando?

- Quer falar com quem?

- Aqui é do oitavo distrito, foi feita uma denúncia de arrombamento a partir desse número e eu estou ligando pra verificar...

- Puxa vida! Me desculpe pelo transtorno mas, foi muito bom você ter ligado. Eu estou reclamando na operadora faz dois meses que o meu celular foi clonado. Já reclamei até no Procon e ninguém resolve. Eu quero registrar uma queixa contra a operadora. Pode ser pelo telefone?

- Lamento, senhor. Nesse caso a gente não pode fazer nada. O órgão responsável para receber esse tipo de reclamação é mesmo o Procon.

- É coisa de louco. A gente faz tudo certinho, sempre na honestidade e essa bandidagem que nem paga imposto vive às nossas custas e ri da nossa cara. Por isso que esse país não vai pra frente.

- Desculpe senhor. Recomendo que procure o Procon.

- Tá certo. Vou lá de novo.

- Desculpe pelo incômodo e tenha uma boa noite.

- Boa noite e bom trabalho pra você.

- Igualmente.