O retorno
Quem descobriu o ladrão na garagem foi meu irmãozinho. Veio correndo nos contar, e a princípio não queríamos acreditar, porque embora nossa casa ficasse em um bairro distante da cidade e fosse meio isolada, era uma quinta-feira à tarde e nós não podíamos admitir que um ladrão viesse nos roubar a luz do dia. Em todo caso, fomos lá, eu, mamãe, vovô, minha irmã mais velha e o revelador do crime.
Foi em 1979. Em algumas luas completaria 19 anos, e apesar de não trabalhar, era considerado o “homem da casa”. Lembro-me de abrir a porta de entrada de nosso pequeno sobrado, e com poucos passos que dei rumo a fora, já pude ouvir ruídos vindos da garagem. Cézar era o mais empolgado com a invasão, imaginando-se poderoso policial com seu “estilingue calibre 38” munido de pedras. Sua busca pelos últimos balões de sua festinha de aniversário (dois dias antes) resultou em um emocionante filme de suspense. Saiu pela porta tão veloz quanto nós, o que deixou mamãe preocupada. Por sua vez, chamou-o fazendo sinais com as mãos para que ficasse parado e quieto, e logo olhou-me com aquele seu olhar angustiado de quando sente algo ruim. Claro que percebi que caberia a mim encarar a garagem e tudo o que pudesse saltar de dentro dela. Nem mesmo vovô moveu seu corpo para me acompanhar. Tudo bem. Não o julguei por isso, pois devido ao seu reumatismo, havia quase vinte anos que deixara de fazer muitas coisas em sua vida política e jornalística, como dirigir, razão pela qual havia vendido seu carro fazia dez anos. Na verdade, foi o único carro da família. No entanto, me incentivou, sábio e sofrido que era. O contrário de minha irmã, poço de futilidade e inércia. Fiquei feliz por ela quando, um ano depois, foi salva por seus trigêmeos, que lhe ensinaram a olhar menos para seu próprio umbigo.
Voltando ao pátio do sobrado, virei as costas; deixei-os para trás, tais quais com suas confianças depositadas em mim. Neguei a companhia do caçula. Se havia alguém que deveria morrer ali, naquele fim de mundo, impedido de sonhar, terminar os estudos e engajar-se na “brava” rotina militar, esse alguém era eu. Dia 9 de setembro de 1979 marcaria as vidas das já tão desgarradas famílias deste bairro suburbano. Mais um jovem estava por partir.
Ao aproximar-me da garagem, imobilizei-me. Suei frio, engoli seco. A cada passo que dava ouvia mais claramente os barulhos oriundos do recinto. Logo pude enxergar uma sombra humana, movimentando-se muito, sem deixar que eu percebesse o que exatamente estava fazendo. Foi quando senti-me preparado para o que viesse. Adentrei a garagem e não vi mais nada. Um estrondo alto e ligeiro me fez dar um pulo para trás e serrar os olhos com tanta força que por um instante pensei: “Acabou. Estou morto.”. Porém, em seguida retornei à realidade, abri os olhos e não acreditei no que vi. Imaginei a cara da mamãe naquele momento, senti algo estranho, vontade de rir, correr, não me recordo ao certo... Mas estava perplexo. O suposto ladrão vestia trapos rasgados e embarrados, tinha a pele e os cabelos imundos e enosados e cheirava mal, apesar de apresentar simplicidade e não parecer possuir algo que fosse, apenas o que o cobria. Observava e tocava nossos objetos antigos e resmungava absurdos sem sentido. Notei seus pés descalços e sob o esquerdo estava uma borracha murcha, azul, com um pedaço de barbante amarrado em uma de suas extremidades. Mal pude acreditar! Quando percebeu minha presença, virou-se para mim, sorriu surpreso arregalando os olhos que, por um segundo, pareceram-me conhecidos, e falou: “Puxa vida, você demorou! Alguém aqui esteve de aniversário? Bom, não importa! Veja o que encontrei!”. Apontou o dedo calejado em direção de um velho televisor, abandonado havia alguns anos, pouco tempo depois de meu pai sair de casa para vender ações. Foi quando mamãe veio socorrer-me entre prantos, abraços e beijos – confirmando minha permanência na Terra. Ao mirar o invasor suas lágrimas cessaram. Ouvi sua boca dizer “Rodriguez”. Fiquei confuso e o mendigo respondeu: “Eu voltei”.