Acidentes Acontecem

Três dias depois das mortes da minha esposa e da minha filha eu estava com o jornal popular nas mãos lendo esta frase: “Acidentes acontecem”. Essa foi a única declaração dada ao jornal pelo motorista que atravessou o cruzamento e atingiu a lateral do carro de Sílvia. Cristine, nossa filha de dois anos, estava na cadeirinha e foi atingida primeiro. A frente do outro veículo quase atravessou o carro da minha mulher. As duas ficaram presas nas ferragens. Foi um trabalho que levou toda a madrugada. Cheguei a vê-las presas no carro. Estavam cobertas de sangue e somente Sílvia se mexia um pouco. Era um quadro que não inspirava esperança. Mas eu tive e fiquei o tempo todo acompanhando o trabalho do pessoal do SAMU e dos bombeiros. Logo constataram que não havia mais vida no pequeno corpo da minha filha. Ainda vi Sílvia viva no hospital. Ela teve tempo de me lançar um olhar que expressava sentir muito me deixar sozinho nesse mundo. Essa era a maior dor dela, pois quanto à filha, de alguma forma, eu sabia que ela sabia que havia morrido. Coisas de mãe.

Só fui chorar no enterro. Acredito que somente quando abaixaram o caixão da minha filha (Cristine foi enterrada antes da mãe) é que entendi que tudo havia acabado. E tudo naquele caso, beirava ao literal. Elas eram o que havia de melhor em mim. Passei a viver depois desse dia dormindo e acordando com uma única questão: Porquê? Porque elas morreram?

Acordar é o pior, porque muitas vezes desperto sem me dar conta do que aconteceu e quando a ficha cai, acabo tendo uma terrível sensação parecida com a que tive com a confirmação da morte delas – um imenso vazio, uma falta de chão... É como se elas morressem todos as manhãs... E eu também.

Viver é um hábito inevitável para simples mortais defeituosos e urbanos como nós. Lembro de ter lido num livro do Darcy Ribeiro que índios brasileiros que foram escravizados após a invasão portuguesa morriam de banzo; de tristeza. Deitavam numa rede e ali ficavam até a vida desistir. Tive inveja deles. Somos apegados à vida, mesmo que esta não tenha mais sentido. É por isso que não sei até hoje se suicídio é coragem ou covardia.

Algumas testemunhas disseram que o carro do rapaz estava em alta velocidade. No boletim de ocorrência ele garantiu que não. Pelo estrago dava pra entender que alguém estava em alta velocidade e eu sabia que não poderia ser a Sílvia. Ele falou que avançou o sinal de “PARE” porque no domingo a noite o movimento é muito reduzido. No jornal também dizia que a polícia não havia encontrado sinais de embriaguez. Quando cheguei a vê-lo no local do acidente, ele não parecia totalmente sóbrio. Mas eu era suspeito pra julgar naquele momento. Afinal, eu mesmo, estava entorpecido, consumido po aquelas terríveis sensações. Porém, percebi que logo que cheguei, ele saiu acompanhado de um homem mais velho e engravatado. Logo suspeitei (e confirmei mais tarde) que se tratava do pai dele. Mas naquele momento minhas preocupações eram apenas com elas.

Como eu havia dito, ver o pequeno caixão com minha filhinha dentro, ser engolido pela terra, foi demais pra mim. Juntaram férias vencidas mais uma licença e me deram dois meses de folga. Sou professor da rede pública. Sílvia também era. Minha família está espalhada por esse Brasil e passei algumas semanas em casa de irmãos e uma na da minha mãe. Tentaram de tudo pra me consolar, mas deixar-se consolar nem sempre é uma questão de escolha.

Muitos de vocês podem estar perguntando se eu não tive vontade de matar o rapaz que destruiu minha família. Sim, esse sentimento veio desde o princípio. Mas veio a prestação e caótico. Foi se moldando aos poucos. Na semana do acidente, toda minha família veio me visitar e meu irmão fez essa pergunta publicamente. Eu simplesmente disse que isso não traria ninguém de volta. Ele demonstrou indignação com minha falta de vontade de vingança. Mas eu percebi que ainda tiraria algum proveito daquela conversa. Só ainda não sabia como. Minhas irmãs e minha mãe concordaram comigo.

Dizem que o tempo cura tudo. Mentira, tudo é muita coisa e muita coisa não cura não. Mas você pode transparecer que cura e fazer as pessoas acreditarem. Depois de cinco semanas viajando, voltei pra cidade e pra minha vida “normal”. Eu ainda tinha três semanas de férias. Televisão não me apetece e também não queria passear. Como professor de literatura, fui me refugiar nos livros. Retomei um hábito adolescente, o de freqüentar a biblioteca pública da cidade. Pouco havia mudado ali, apesar dela ter atravessado a Av. Bias Fortes entre o tempo da minha adolescência e o de hoje. Fui instintivamente na prateleira dos autores brasileiros, cheguei fácil na letra “S” e peguei “Faca de Dois Gumes” do Fernando Sabino para reler. Trata-se de um livro com três novelas, mas a que me interessava mesmo é a que dá nome ao livro. Percebi que aquilo estava nitidamente arquitetado; que eu seguia um plano que ainda não estava descortinado.

Eu havia guardado morbidamente vários recortes de jornais, uma cópia da ocorrência e qualquer tipo de detalhe que havia tratado do "acidente". Com alguma dificuldade fui buscar essa pasta no fundo de uma gaveta. Achei o que procurava; a ocorrência. Lá estava o endereço dele. Era no bairro vizinho ao meu.

Na lista telefônica constava um nome parecido no endereço. Certamente era do pai dele. Nessa hora eu já me convencera que o pai era realmente aquele homem que se ocupou em colocar um terno num domingo à noite para acudir o filho. Era sexta feira, eu queria ir até o endereço, mas ao mesmo tempo temia ficar próximo de algo que tivesse haver com aquela tragédia.

Acabei indo somente no domingo à noite (coincidência?). Fui caminhando. A casa fica numa esquina. Enorme e suntuosa, dois andares. Havia dois carros na garagem. Aquele lugar soava estranhamente familiar. Estar ali me parecia inevitável. Como se já tivesse acontecido de uma outra forma e naquele momento eu só concretizava. A rua estava deserta, por isso não me demorei. Fui caminhando lentamente em direção ao meu apartamento. Quase chegando na avenida que separa os bairros havia um bar aberto. Um carro estava parado na porta. Quando eu estava a uns cinco metros do bar, sai um rapaz em direção ao carro com uma latinha de cerveja na mão. Sem dúvida era ele. Caminhava demonstrando certo cansaço e desequilíbrio. Quando passei, ele já estava tentando dar partida. Não me viu. Tive a impressão que ele não veria ninguém e não faria diferença se fosse eu, uma mosca ou um elefante. Arrancou o carro dando um tranco, pisou fundo, converteu a direita com apenas uma das mãos, invadindo a outra pista. Ouvi a cantoria dos pneus. Naquele momento visualizei o trajeto que ele faria para chegar em casa e percebi exatamente o momento que ele atingiu o carro de Sílvia. Consegui fazer essa reconstituição em segundos.

Durante a semana consegui descobrir o que já imaginava. O pai dele era Juiz no Fórum Lafaiete. Possivelmente o filho não perdeu nem a carteira de motorista. Eu já sabia o bastante.

Domingo à noite fiz a mesma caminhada da semana anterior e no mesmo horário. Lá estava a casa e os dois carros. Calculei o tempo e voltei pelo mesmo caminho. Quando passei pelo bar, o carro não estava lá. Fui até a esquina da avenida e esperei. Fiquei uns quinze minutos e atravessei a avenida. Já havia passado mais de meia hora. Cheguei a pensar que ele poderia ter escolhido outro caminho. Mas algo me dizia que não. E eu estava certo. Antes de completar meia hora, ele estava parando na frente do bar. Mesmo a uma distância maior, pude perceber que ele teve dificuldades pra sair do carro. Estava com um cigarro aceso e cambaleou pro interior do bar. Não demorou a sair com a latinha na mão. Dei as costas e fui caminhando. Já havia visto o suficiente. Ainda assim não pude deixar de ouvir o barulho dos pneus gemendo no asfalto.

Meu irmão, desde a morte das duas, vem insistindo pra eu ir morar com ele. Está separado a dois anos e mora sozinho numa casa de três quartos. Ele disse que eu não teria dificuldades em conseguir uma colocação na cidade. Pela primeira vez, comecei a cogitar essa possibilidade. Como era minha última semana de férias, decidi ir pra casa do meu irmão em Goiânia.

Passei a semana arranjando algumas coisas, entrei no ônibus sexta à noite e cheguei no sábado pela manhã. Conversamos bastante sobre a possibilidade da minha ida pra lá. Pedi a ele pra me levar num lugar na região rural que ele havia comentado comigo. Lugar bonito e tranqüilo. Estávamos almoçando quando resolvi falar com ele:

- Preciso de um grande favor seu. Mas é um favor com algumas condições.

-Diga. Respondeu ele.

Preciso que você me leve pra conhecer pessoas. Seus amigos. Se tiver alguma festa, melhor ainda.

- Já está querendo enturmar por aqui?

- A principio é mais uma necessidade do que querer.

- Mas que necessidade?

- Essa é uma das condições. Sem perguntas.

- Um dia você me conta.

- Não espere por isso. Na verdade preciso que você nunca toque nesse assunto com ninguém, nem comigo.

Ele estava incomodado, mas percebeu que não havia alternativas.

Uma das amigas do meu irmão estava comemorando aniversário. Fui apresentado a várias pessoas que sorriam e bebiam. Eu não estava disposto pra nenhum dos dois, mas forcei sorrisos. Eu não quis beber, ele bebeu um pouco e eu levei o carro no fim da festa.

Acordamos tarde no domingo. Resolvemos almoçar na casa de uma tia. Foi ruim e dolorido. Virei o centro das atenções com todo mundo querendo saber do acidente. Mas eu precisava daquilo e tentei ser o mais tolerante possível. Quando insistiam sobre como havia ficado minha vida depois da tragédia, eu as vezes dizia: “Vou levando” e “acidentes acontecem” e me lembrava da declaração dele pro jornal.

Quando passou das dezesseis horas, chamei meu irmão para irmos embora; aleguei indisposição. Ele não se opôs, também parecia enfarado. Quando chegamos em sua casa, fui direto para o quarto em que estava instalado, depois tomei um banho e saí em alguns minutos, cheguei na sala onde ele via tevê. Ele notou a mochila e a roupa que indicava que eu não ficaria em casa.

- Onde você vai?

- Conforme havia dito, não posso te contar.

- Mas... Ele sentiu que não tinha como continuar.

Me despedi.

- Olha, volto amanhã pela manhã. Se você tiver uma chave extra, eu aceitaria. Preciso ser visto o menos possível nesse ínterim. Gostaria que parecesse que eu dormi aqui hoje. Pode ter certeza que não vou te colocar em nenhuma encrenca.

- Confio em você. Disse ele me entregando a chave.

Nos abraçamos e nos despedimos.

Saí tranquilamente sem ser visto. Ele morava num desses conjuntos de três andares, sem porteiro.

Andei calmamente, havia tempo, logo cheguei numa avenida e um táxi apareceu.

Eu já havia entregado o livro “A Faca de Dois Gumes”, mas era nele que eu pensava no saguão do aeroporto. Havia algumas semelhanças entre o que eu estava fazendo e o que fez o protagonista da história; Aldo Tolentino. Mas eu, como ele, agia mais por instinto e o plano seguia seu caminho naturalmente. Pensar nas conseqüências estava fora de cogitação.

Como eu havia dito, durante a semana que precedeu minha viagem, arranjei algumas coisas. É impressionante a facilidade de se conseguir mercadorias ilegais sem deixar rastros nas grandes cidades desse país. A primeira coisa que arranjei foi uma identidade falsa. Foi com ela que comprei as passagens aéreas. Um revolver com silencioso deu um pouco mais de trabalho. Visitei algumas lojas e como não tenho porte de arma, logo um vendedor me mostrou o caminho pra conseguir no mercado negro. Mais constrangedor foi conseguir as drogas. Com certeza foi muito mais simples do que arranjar uma arma, mas comprar drogas foi algo que me causou muita ojeriza. Porém o que mais gostei de fazer não foi nada ilegal. Costurei a cinta com pregos com uma paciência chinesa. Afinal, se ela falhasse, tudo estaria acabado.

Quando cheguei, peguei um táxi no aeroporto e segui pra rodoviária. Lá eu havia alugado um armário. Dentro deste estava tudo o que eu precisava naquela noite. Peguei o pacote e joguei na mochila. Peguei outro táxi e segui. Desembarquei numa rua paralela ao anel rodoviário. Desci e logo estava na mesma avenida que separa meu bairro do dele. Dei a volta e não passei pelo bar. Já passava das vinte e duas e as ruas estavam desertas. Parei na frente de um muro que cobria um lote vago. Amarrei a cinta numa viga saliente do muro. Levei até o meio da rua na contra mão de direção de onde calculei que ele passaria. Pegá-lo no momento em que cometia uma infração de trânsito era um detalhe aparentemente insignificante, mas que significava muito pra mim. Também havia o fato que era importante furar apenas um dos pneus, dois ou mais poderia colocar tudo a perder. Desamarrei a cinta e a enrolei novamente. Botei na mochila e voltei pra avenida pelo mesmo caminho.

Aguardei do lado do meu bairro. Ele não tardou a chegar. Logo que o carro parou no bar, fiz rapidamente a volta a tempo de instalar a cinta. Coloquei-a em diagonal calculando pra não avançar mais da metade da pista. Fui pra esquina da frente esperar.

Minha teoria funcionou. Coloquei a cinta logo na saída da curva. Assim quando ele terminou de virar com mais da metade do carro invadindo a outra pista, eu já ouvia o barulho. Fui descendo devagar. Ele já havia descido do carro e estava elogiando quem havia deixado aqueles pregos ali. Me aproximei.

- Você está com problemas aí amigo?

Eu ainda tinha receio dele me reconhecer, mas algo me dizia que isso não aconteceria.

- Algum filho da puta amarrou essa porra aqui. Olha só. Furou o pneu.

Suas palavras vinham com o cheiro agridoce de muita bebida.

- Quer ajuda pra trocar?

Ele me olhou sem nenhuma familiaridade.

- É, eu tô meio alto. Se você puder me ajudar, não vou achar ruim não.

Olhei a cinta quase atingindo o outro pneu.

- É rapaz, você ainda deu sorte de não estourar o outro pneu.

- Ah se eu pego o desgraçado que fez isso. Mato o infeliz.

- Calma rapaz, deve ter sido algum moleque. Vamos resolver isso aqui. Abre o porta-mas e vai pegando o macaco enquanto eu tiro esses pregos do caminho.

Quando tirei as mãos do bolso ele notou as luvas negras de couro. Mas era junho e fazia frio.

Enquanto ele foi pra trás recolhi a cinta e joguei na mochila sem que ele percebesse.

Fiz a troca rapidamente.

- Ô cara, obrigado mesmo. Nem sei como posso te agradecer.

- Você pode me dar uma carona. Moro perto da sua casa.

- Você me conhece?

- Claro, você não é o filho do doutor Anselmo?

- Conhece meu pai?

- Muita gente conhece seu pai rapaz, não é todo bairro que tem um juiz.

- E onde você mora?

- Moro três quarteirões pra baixo da sua casa. Perto do colégio da prefeitura. Conhece?

- Não muito.

- Ali começa a parte mais pobre do bairro.

Ele fez um gesto concordando e me fez sinal pra entrar.

Fui indicando o caminho. Fiz ele voltar pela avenida e ir no sentido do anel rodoviário. Ele estranhou.

- Por aqui a gente não ta dando volta não?

- Que nada, aqui é mais rápido.Você vai ver. Depois é só você subir que estará na porta da sua casa. Fiz ele entrar na parte pobre do bairro. Pedi pra parar em frente ao muro do colégio. Do outro lado tem um grande muro escondendo um lote vago.

- Você mora aqui? Não tem nenhuma casa aqui.

- Moro mais pra baixo. Mas aí já é um pouco perigoso.

Abri a mochila e retirei a arma.

- Que isso cara! Se vai me assaltar? Eu tô sem dinheiro aqui. Pode levar o carro.

Apontei o revolver no peito dele e mandei ele desligar o carro.

- Não vou te assaltar não. Você vai morrer.

Ele começou a se desesperar, chorou, suplicou, ofereceu pra passar num caixa eletrônico e sacar dinheiro. De pedir dinheiro pro pai e por fim perguntou porque eu iria matá-lo.

Pensei em falar pra ele sobre Sílvia e Cristine. De como eu sabia que elas haviam morrido gratuitamente graças a imprudência dele e que o que ele classificou como “acidentes acontecem” era o fim de uma família. Queria mostrar pra ele como eu sabia que ele não se importava com ninguém e nem com o mau que faz, já que ele continuava tomando as mesmas atitudes no trânsito, dirigindo bêbado e em velocidade. Queria mostrar pra ele que ele se sentia impune por ter pai juiz e que esse sentimento podia tirar vidas. Mas aquilo tudo era muito didático, era como querer dar uma lição. Eu não estava ali pra isso. Estava ali por uma pura, silenciosa e gélida vingança. Não estava fazendo isso pra sentir alívio nem fazer justiça, nem por querer vê-lo sofrer. Eu simplesmente queria matá-lo da forma mais fortuita e simples. Também me agradava saber que ele morreria sem saber o porquê. Ele teria essa sensação de injustiça com a própria vida. Sentimento que certamente minha mulher e minha filha tiveram antes de morrer. Ele colocaria a existência de Deus em jogo.

Puxei calmamente o gatilho contrastando com o desespero e choro dele. Atingiu silenciosamente o peito. Se debateu. Atirei mais duas vezes. Me lembrei, quando criança, de ver as galinhas que minha avó abatia pro almoço. Perdiam a cabeça na faca, mas continuavam se debatendo até perderem as forças. Gostei de ver a cara de “porque?” dele. Ele não sabia, mas eu estava apenas igualando as coisas.

Assisti a vida abandonar o corpo dele impassivelmente. Isso demorou um tempo – embora menos tempo que as aves vítimas da minha avó. Depois coloquei os papelotes de cocaína nos bolsos do seu blusão. Eu sabia que aquela região era deserta àquela hora da noite. Que não apareceria ninguém. Saí andando calmamente. Limpei os locais onde encostei.

Eu não havia mentido pra ele, sua casa ficava mesmo a três quadras dali. Passei por ela, parei um momento, desci até a avenida. Não tardou a passar um táxi. Eu sabia que sempre circulam táxis naquela avenida a qualquer hora do dia ou da noite, por causa das prostitutas que fazem ponto lá. Fui para o centro, andei na beirada do rio Arrudas e arremessei primeiro a arma, mais pra frente joguei a cinta de pregos. Polícia nenhuma no mundo teria coragem de procurar algo no Arrudas. Dormi num hotel barato usando a identidade falsa. Meu vôo sairia cedo.

Meu irmão já estava acordado quando abri seu apartamento. Ele estava ansioso.

- E aí, deu tudo certo?

- Quarta-feira tenho que estar de volta. Temos hoje e amanhã pra você me levar naquelas escolas que você disse conhecer algumas pessoas.

Ele deu um sorriso sabendo que teria que conter sua ansiedade. Mas acredito que minha tranqüilidade o fez entender que o plano vingou – literalmente.

- Você vai gostar daqui. Disse.

- É, também acho.

Voltei pro trabalho na quarta já avisando ao diretor minha intenção em sair da escola. Ele se mostrou preocupado. Expliquei sobre meu irmão e que também tinha algumas economias, além do dinheiro do seguro do carro. Expliquei que eu não compraria outro por enquanto.

A polícia demorou mais de uma semana pra bater lá em casa. Me perguntaram se eu conhecia o rapaz que foi morto. Eu disse que não. Me lembraram quem ele era.

- Isso não me faz conhecê-lo, talvez até o contrário.

Por fim disseram que de qualquer maneira eu teria que comparecer na delegacia.

O delegado começou fazendo as mesmas perguntas dos policiais e eu dei as mesmas respostas. Minha expressão poderia ser chamada de sem expressão e minha calma de alheamento. O delegado parecia ter dificuldade em fazer seu julgamento. A primeira pergunta diferente foi sobre o que eu fiz no dia da morte dele. Confirmei a data, demonstrei esforço pra lembrar.

- Ah, sim, foi a semana que eu estava em Goiânia, na casa do meu irmão.

- E o que foi fazer lá?

- Além de visitar meu irmão, fui ver algumas propostas de emprego.

Ele me olhou nos olhos tentando fazer alguma leitura.

- Emprego? O senhor ta tentando fugir da cidade?

- Como? Me espantei. Porque fugiria?

- E porque o senhor está querendo ir pra outro estado?

- Porque aconteceu um acidente fatal com minha família, perdi esposa e filha e não tenho mais parentes aqui.

- Disso eu sei.

- Como?

- Sei da morte da sua família. Por isso está aqui. Foi ele não?

Eu percebia que era um jogo. Um jogo de xadrez em que cada mexida tinha que ser estuda.

Mas ele não podia saber que eu sabia disso.

- Ele quem?

- O rapaz que foi encontrado morto dentro do carro. Foi ele quem estava no carro que atingiu sua filha e sua esposa.

- É, o policial me falou algo a respeito.

- Parece que o senhor ainda não percebeu que é um dos principais suspeitos.

- Eu, por que?

- Porque ele causou a morte da sua família e você poderia querer se vingar.

- E de que adiantaria isso? Não às traria de volta. Além disso eu nem conhecia esse rapaz, só o vi no dia do acidente.

- Mas cá entre nós, o senhor em nenhum momento teve raiva desse rapaz? Não pensou que ele era o responsável pela morte da sua mulher e sua filha?

- Tive esse pensamento no início, mas era um pensamento que se misturava com tantos outros. Eu estava confuso e na verdade, tinha dificuldade em acreditar que elas haviam morrido. Depois fiz algumas viagens para ver minha família e aí as coisas foram ficando mais claras.

- O senhor tem as passagens desta última viagem que fez a Goiânia?

- Não tenho certeza, tenho que verificar.

- Não se preocupe, já tenho seus horários. Nós temos como verificar.

- O senhor chegou lá no sábado pela manhã, correto?

- Sim.

- E voltou quarta-feira?

- Sim, saí de lá terça a noite, cheguei quarta. Voltei porque minha licença havia acabado.

- E o que fez lá no sábado e no domingo?

- No sábado, eu e meu irmão fomos numa cidadezinha próximo de Goiânia. Almoçamos lá. A noite fomos num aniversário de uma amiga dele.

- Certo, e no domingo?

- Fomos almoçar na casa de uma tia, passamos a tarde lá e depois fomos pra casa.

- E a noite?

- Não saímos mais, estávamos cansados, principalmente eu.

Ele me olhou nos olhos. Aquele era o ponto. Dava pra perceber que a história não o convencia cem por cento, mas como eu já sabia, ele não tinha nada além do suposto motivo pra me incriminar.

- Encontramos o corpo dele pela manhã após um telefonema, mas acreditamos que o crime aconteceu no domingo à noite. Também foi encontrado nos bolsos dele alguns papelotes de cocaína, além de algumas latas de cerveja vazia dentro do carro. Muita gente por aqui acredita que ele morreu pelas mãos do tráfico, o que é bastante comum naquela região. O próprio pai dele não quer que saia na imprensa e ta tentando abafar o caso, porque se trata de um influente juiz. Eu tenho minhas dúvidas, mas o senhor tem todos os álibis, não foi encontrada nenhuma arma, mas mesmo assim o senhor, pra mim, não deixa de ser um suspeito em potencial . Agora tenho que admitir que para o senhor ter cometido esse crime precisaria vir de Goiânia pra cá voando.

- Não tenho asas.

Ele se aborreceu com o comentário.

- O senhor poderia ter vindo pra cá de avião no domingo e voltado no dia seguinte.

- Eu estava na casa do meu irmão, como expliquei.

- Verificamos nas companhias aéreas e não existem reservas no seu nome. Eu acredito que o senhor possa ter vindo, mas se o fez, não deixou rastros, por isso não tenho como provar nada. Nem mesmos indícios.

Fiquei calado como se aquelas palavras são fossem dirigidas a mim. Ele completou.

- Vamos fazer algumas verificações e talvez eu precise falar com o senhor novamente. Não saia da cidade sem nos avisar e deixar o endereço de onde ficará. Pode ir.

- Fui levantando lentamente. Dei as costas e quando caminhava pra saída ele me chamou.

- Só uma coisa, eu queria saber a opinião do senhor. O que acha que aconteceu com ele?

- Olhei nos olhos dele.

- Sei lá, fatalidade. Acidentes acontecem.

- Mas não foi acidente, ele foi executado.

Olhei indiferente.

- É verdade, eu havia esquecido.

Esse foi o único momento que me arrisquei. Se ele leu a nota no jornal, poderia fazer uma associação. Mas mesmos assim não teria nenhuma prova. Na verdade ele parecia com mais vontade de saber a verdade do que de me punir. Ele estava intrigado, sentia que havia algo estranho, mas também percebeu que mesmo que suas suspeitas fossem verdadeiras, eu não seria apanhado.

Não me chamaram. Quando estava de mudança pra Goiânia, fui na delegacia pra comunicar. O delegado havia sido transferido pro interior. Um inspetor me atendeu, anotou o endereço e disse que o delegado concluiu o inquérito sem me acusar e que eu certamente não seria incomodado.

Em Goiânia fui começar um resto de vida nova. Eu não me sentia aliviado pelo que fiz, mas sentia algo mais como compensação. Sei lá. Na verdade o que ficava era sempre a lembrança das duas e o fato cabal de que as havia perdido. Viver não seria fácil. Quanto a ele, eu não sentia remorsos nem orgulho. Eu tinha uma consciência que ele morreu porque demonstrou naquela declaração o tanto que não se importava com o mau que havia causado e que talvez nunca tenha tido a menor dimensão disso. O que fiz foi mostrar que alguns acidentes acontecem sim, mas alguns são provocados. E ele teve que ser vítima de um pra entender. Ou não.

Fernando Tamietti
Enviado por Fernando Tamietti em 14/07/2008
Reeditado em 17/02/2014
Código do texto: T1079888
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