Alfonso
Alfonso, boliviano de Santa Cruz de La Sierra, vivia com os seus pais num pequeno sítio de propriedade da família. O cultivo mal dava para a sobrevivência, todavia, com muito trabalho e sacrifício mantinham as suas vidas vivas e também as terras herdadas de muitas gerações.
Os traficantes de coca da região preocupados com a baixa produção dos últimos anos pressionavam todos os sitiantes vizinhos a cultivarem a planta maldita. Uns levados pelo medo, e outros, corrompidos pela ganância, se rendiam aos refinadores.
O pai de Alfonso era honesto, seguro de si e de uma educação irrepreensível. Estas qualidades foram herdadas de pais muito severos com a educação dos filhos. Devido a esta educação, desrespeitou as ordens dos poderosos e foi o único lavrador a não cultivar a planta.
Certa noite, doze homens encapuzados e fortemente armados chacinaram quase toda a família dos resistentes. Alfonso, que na época tinha dezenove anos, caiu ensangüentado dos pés à cabeça sob os corpos fulminados pelas balas insensíveis das metralhadoras importadas. Tornou-se assim o único sobrevivente desta chacina abafada por “gente grande” e jamais divulgada nos meios de comunicação.
O barulho infernal da explosão infernal das espoletas; o fogo em chamas cuspido pelas rajadas das metralhadoras avassaladoras; o ladrar impaciente, obsessivo e defensor dos cães de guarda, que nunca mais guardarão propriedades deste mundo; a gritaria prazerosa, ofensiva, desafinada dos bárbaros homicidas; os lastimáveis murmúrios moribundos, os muitos gemidos agonizantes e as aclamações por misericórdia das vítimas (animais racionais e alguns animais irracionais e domésticos); todos esses sons assustadores, intranqüilos e mais o desejo de viver um pouco mais, tombaram com o nosso sofrido, atormentado, porém, “sortudo” boliviano.
Algumas horas após o extermínio, ainda zonzo e desorientado pela barbárie, Alfonso livrou-se do incômodo peso que os corpos dos seus pais lhes exerciam e retirou aquela roupa manchada de sangue… sangue de toda sua família.
Banhou-se, observando atentamente aquele líquido vermelho que escorreria até o ralo do banheiro. Colocou alguns pertences numa sacola plástica, incluindo uma reprodução gráfica de Santo Expedito (o santo das causas urgentes). Apanhou o dinheiro que seu pai escondia num jarro, imitação de porcelana, e sumiu para o Brasil. Sem destino, porém ainda vivo.
Chegou no Terminal Rodoviário Tietê, de São Paulo, e o céu ainda estava claro, embora algumas nuvens anunciassem que a chuva não tardaria a chegar. A primeira impressão que teve da cidade não foi diferente daqueles que desembarcam pela primeira vez por esta parada.
Nota do autor: não me estenderei na narrativa das visões espantadas destes visitantes permanentes. E não darei qualquer justificativa por este ato.
Alfonso, o boliviano assustado com os últimos acontecimentos, se aproveitou mais uma vez de sua sorte e saiu à procura de emprego. Os ventos positivos estavam a seu favor e favoráveis às suas ambições, e logo encontrou alguém disposto a empregá-lo.
Paco, boliviano e recrutador clandestino de almas bolivianas clandestinas, conduziu-o a uma casa muito velha. Prendeu-o no porão.
Aprendeu em poucos dias a difícil arte de coser e costurava camisetas brancas durante os dias e durante as noites. Parava apenas para se alimentar – se é que alguém poderia chamar aquilo de alimento –, e para dormir por quatro magníficas e necessárias horas.
Sobreviveu mais uma vez. Desta vez escapou sem manchas de sangue de outra chacina. A chacina da dignidade humana.
Alfonso, ainda que não transparecesse totalmente, não saíra ileso destas torturas.
Seus sonhos são sempre acompanhados de gritos aterrorizantes emitidos por alucinações aterrorizantes, que aspira minuto a minuto a vingança. Este desejo parece incontrolável nos pesadelos noturnos e diurnos de Alfonso. Ainda se vingará daqueles malditos encapuzados, que ele bem sabe quem são.
Um dia ainda ditarei outras histórias para que este paciente autor as transcreva.
A vida destes ilustres marginais, excluídos pelos vícios e interesses da sociedade dita organizada, contará ao mundo, o quanto o mundo conta nas suas contas, com a escravidão destes pobres espíritos.