Pensão (sic) da Dona Valéria

Dona Valéria é a proprietária do sobrado onde alugo um quarto, aliás, uma sala cortada ao meio por uma parede de pinho até o teto e transformada em dois quartos. Diz ela, e nisso confio, pois é uma mulher autêntica e clara, que aluga os cômodos com a única e exclusiva finalidade de aumentar a sua renda mensal. Mesmo acreditando no seu discurso monetário, e isso ela faz com exímio gabarito, desconfio que existam outros motivos, não tão radicais, para esta árdua e honrosa empreitada.

O imóvel é enorme e localizado num dos pontos centrais de Santana, motivo pelo qual a Prefeitura Municipal de São Paulo envia-lhe anualmente um carnê de Imposto Predial com prestações mensais altíssimas. Talvez esteja aí o principal motivo dela alugar tais cômodos, ou seja, ela necessita aumentar a sua receita em Reais e encarar a realidade de pagar os tributos imobiliários, que também são cobrados em Reais.

Deixando os orçamentos domiciliares de lado e buscando outros motivos que levam esta prestativa senhora a alugar o seu imóvel, chego à seguinte conclusão: a casa é grandíssima e ela jamais viveria apenas com seu marido neste casarão. Contudo, seria para ela um prédio ideal para se brincar de esconde-esconde.

Mesmo com os seus sessenta anos, a sua diabete nervosa, o seu colesterol alterado, a sua pneumonia dupla já curada, porém sempre citada com lamentações múltiplas, esta mulher é um exemplo vivo de mulher: dinâmica, tagarela, versátil, ágil, decidida, amiga, vencedora, guerreira, enfim, jamais eu imaginaria esta virtuosa morando sozinha, e, principalmente numa residência tão ampla e confortável como esta. Não divagarei nos motivos e neste caso prefiro os fatos, que são mais plausíveis.

Minha sala, aliás, quarto-metade, é o primeiro dos quatro quartos do sobrado. Faz frente com a rua, que por sua vez é extremamente movimentada. O movimento dos automóveis, ônibus e até de caminhões transforma-se num barulho insuportável e infernal. As minhas preocupações literárias são deixadas de lado, assim sendo, retorno ao mundo barulhento dos normais. Noto com os meus ouvidos quase que desligados que a manifestação destes veículos é extremamente frenética.

Quando o sol se apresenta pela manhã, e estranhamente esta revolução é diária, ele, o sol, logicamente, não me pergunta se desejo ou não a sua imperiosa e despótica presença. Como um raio que desce nuvem abaixo, ele invade a minha janela de vidro, iluminando com seus raios fulminantes todo o meu quarto-metade. Uma cortina de renda branca é a única barreira para proteger meu quarto-metade contra a invasão dos raios fulminantes do sol. E francamente, esta cortina precisa ser lavada, pois é visível o pó nela contida. Seria lógica a captação desta energia solar matutina, todavia, eu me escondo destes raios invasores.

Tenho o hábito de estar sempre vestido no meu quarto-metade, mesmo que este vestuário se resuma a uma simples e confortável bermuda. É necessário estar de sobreaviso porque costumo abrir a única porta do meu quarto-metade para a brisa mansa adentrá-lo. O cômodo até então viciado com a fumaça e cinza de cigarro, além é claro de outros gases que não mencionarei por simples respeito ao leitor, se renova, dando novos ares de vida a uma vida que se presume morta, ou quase viva. Sou viciado em ar viciado, mesmo assim, é interessante e higiênica esta renovação.

Procuro não descrever com mais detalhes a minha moradia, que a primeira vista parece simples, para que os leitores mais opulentos não se exaltem e delirem por estarem numa situação residencial e econômica bem melhor do que a minha. Também, não a descrevo para que os leitores mais humildes não se humilhem ainda mais. Na realidade, não sei o por que deveria descrevê-lo. Poderia simplesmente ignorá-lo, fato este que não acrescentaria, nem diminuiria em absolutamente nada o texto. Esforço-me ao máximo para não transparecer a minha banalidade, e mesmo com esta persistência, o que mais transparece na minha personalidade literária é exatamente este compromisso com a banalidade. É desnecessário buscar argumentos medíocres, afinal, sou banal nesta descrição. Porém, lhes confesso: não é isso o que quero escrever e mesmo assim, escrevo.

Embora contra a minha vontade pessoal, e, amarrado à minha vontade literária, continuo a derramar neste papel, um mar de tintas sem sentido e, entretanto, sigo em frente, portanto, não lhes dou a mínima.

Outros cômodos – maiores ou menores, mais ou menos iluminados, mais ou menos arejados, mais ou menos embolorados, mais ou menos mobiliados, pintados a látex ou a caiação, com mais ou menos baratas, mais próximos ou mais distantes dos banheiros –, servem também como quartos de hóspedes. Seria inútil, ou tão inútil quanto, descrever cada um destes pitorescos aposentos, mais por serem originais do que pictóricos. Alguns dos seus locatários, e aí considero quase todos, não os conheço. De outros, mais ou menos familiarizados, sei apenas os nomes. Dois destes ilustres pensionistas (quando a Dona Valéria ler este parágrafo ficará “puta da vida”, pois odeia que chamem seu sobrado de pensão) têm histórias excêntricas e mais vulgares que a maioria dos seres humanos.

O senhor Ricardo, paranaense-brasileiro de um pouco mais que a meia idade, mora no melhor de todos os quartos da pensão (sic). Divide este quarto – separado ao meio por uma divisória de madeira, que para a sua infelicidade não chega até o teto – com a sua jovem e prestativa esposa – ele me confidenciou que não sabe quantas vezes se juntou a uma mulher –, e para o seu incômodo, o cômodo também é ocupado por seu pai desafeto, um senhor paranaense-brasileiro de oitenta e quatro anos, mas que na realidade aparenta apenas setenta e três. Poucas ou quase nenhuma foram as suas confidências a respeito de sua atual esposa, a qual chama pelo singelo e meigo apelido: ”Baixinha”. Certo dia, quando jogávamos conversa fora, me disse muito rapidamente que ela é maranhense-brasileira, e tem uma irmã que reside na Itália. Na última semana, ela ganhou um automóvel quase zero na rifa, que segundo ele, fora comprada com o seu dinheiro, dez reais, daí a justificativa do bem ser dividido exatamente pela metade. Assim que surgiu o primeiro interessado venderam o automóvel, e segundo soube, por um preço bem acima do mercado. Fica a interrogação: será que o valor fora dividido exatamente pela metade como combinaram antecipadamente? Isso lá são outras histórias.

O que me importa, ou não, é que resta a este antigo vendedor de Computadores Brasileiros o sonho de se mudar para Boa Vista. Nos seus planos de mudança levará consigo a sua “Baixinha”, porém, deixa claro que não levará o pai desafeto. Este passará o resto de sua vida num asilo, previamente visitado pelo senhor Ricardo, em Campos do Jordão.

O sonho e a realidade deste paranaense-brasileiro estão tão próximos como próximos estão o seu amor e o seu ódio, aliás, desconheço o seu amor e apenas conheço o seu sonho e parte da realidade, tão real quando aparece com diversas sacolas de plástico repletas de ofertas compradas nos mais distantes supermercados. Nestas empreitadas, onde a direção e a distância não importam, pois são encontradas nos folhetos publicitários, a sua fiel escudeira “Baixinha” o acompanha lado a lado e sacola a sacola. O suor e a fadiga traduzem-se em economia doméstica e o prazer de vencer os preços. Muitas vezes ouvi o senhor Ricardo dizer que não precisava dos produtos comprados, que o sabor da vitória era mais especial que as sobras, que invariavelmente sobrariam.

Desde criança ouviu que eram cinco as entidades: Cegonha, Bicho-Papão, Coelho da Páscoa, Papai Noel e Deus.

Aos poucos, descobriu que a barriga da mulher armazenava os guris com mais afeto e mais cuidado. Que as cegonhas, essas realmente com letra minúscula, não entendiam os sinais dos humanos. Esta foi a sua primeira e talvez a mais importante descoberta.

Durante este mesmo período de aprendizado do que é a vida real, afastou qualquer possibilidade da existência do nefasto e vil Bicho-Papão. Viu com os seus olhos bem abertos, que este ente criado maldosamente pelos adultos para assustar as pobres e ricas e inocentes criancinhas estava apenas nas mentes poluídas destes maldosos, vingativos e desqualificados adultos. Esta foi a sua segunda descoberta. Importante para determinar a sua ausência completa de medo de seres inexistentes, ou até mesmo invisíveis.

Os ovos de páscoa eram confeccionados de chocolate, e mais, também aprendeu com a sua volúpia em conhecer, que os coelhos jamais foram ovíparos. Os armazéns ficavam repletos destas guloseimas. Eram oferecidos aos clientes em diferentes formatos e em diferentes tamanhos. Nem mesmo o maior de todos os dinossauros conseguiria botar tal ovo. Esta terceira descoberta ensinou-lhe que os comerciantes inventaram um coelho que botava ovos, e pior, a gema e a clara eram de chocolate.

A tradição natalina não poderia faltar no seu lar, já que os seus pais eram cristãos católicos. Um dos seus tios apareceu cautelosa e sorrateiramente na sala de jantar de sua casa vestido com a roupa vermelha e branca do “bom velhinho”. O menino Ricardo procurou desesperadamente pelo alce e pelo trenó, e nada. Após estas primeiras decepções, suspeitou que se tratava de um larápio travestido de Papai Noel. A confirmação de que era seu tio veio quando reconheceu aquela voz fanhosa e gaga. A sua surpresa foi menor que a sua desilusão. Descobriu que existia em todos os lares cristãos católicos a figura carismática deste “bom velhinho”. E mais, que havia um Papai Noel diferente para cada casa.

Descobriu, aguçado pela sua espontânea curiosidade, que estas quatro entidades nunca existiram realmente.

Então, passou a perguntar a si e a outros sobre a existência da quinta entidade, Deus. Bradou pela sua aparição e nada deste Deus aparecer. Gritou e fez silêncio para escutar a voz de Deus, e não escutou nem um sussurro da voz de Deus, apenas a sua própria voz, que se encontrava rouca devido a tantos gritos. Mais tarde entendeu que todas estas entidades foram criadas por nós. Não quis entender os motivos que os humanos tiveram para criar esta criatura, que fizemos ser o criador.

Hoje, desdenha qualquer das passagens bíblicas. Suspeita até dos fatos históricos que marcaram esta saga dos judeus. E se recusa terminantemente a acreditar nos atos divinos proferidos a simples humanos.

O senhor Ricardo orgulha-se de ser um dos poucos brasileiros a conceder-se o direito de não ter votado nas últimas cinco eleições. Paga a multa de três reais por não comparecer no dia da votação. É totalmente avesso à política, embora fique evidente que é um cidadão politizado. Renega-se a acreditar em qualquer político.

Tem aversão a seu pai, e, apenas sabe que quatro dos seus cinco irmãos estão enterrados em algum cemitério.

Neste instante, o leitor mais atento perguntaria: por que gastar tinta, papel, diagramação, fotolito, chapa, impressão com um ser tão irrelevante? Este, que com esta caneta esferográfica escreve e descreve, lhes responde: a mim, é singular um ser humano sonhar com a sua casa em Boa Vista. Por isso, e nada mais que isso, este paranaense-brasileiro mereceu estas linhas.

Valério mora próximo ao banheiro, sendo assim, seu quarto é um mofo escandaloso. As paredes são emboloradas, tão emboloradas quanto o hálito matinal deste sofrido rapaz. Pela manhã é o primeiro a entrar no banheiro. Quando sai, ainda escuro, até parece que irá a uma reunião de executivos. Sempre muito bem alinhado corre ao encontro da filha Camila para levá-la à escola.

A vida tenta, insistentemente, vencer Valério, mas Valério, desgraçadamente, vence a vida. A vida, esta cruel e nefasta personagem, empurra-o pinguela abaixo, e ele “despinguela”, não encontrando o tronco salvador, mas encontra outra vida, aliás, nem sabe realmente qual, mas a encontra.

O seu sonho: se aposentar por invalidez. Não é inválido, e sim, inviabiliza a viabilidade de sua vida. Ou viabiliza a inviabilidade de sua morte.

Seu olhar verde, o seu ombro esquerdo caído e as suas palavras quietas são tão tristes quanto o seu estado de embriaguez diária.

Seu coração e os seus gestos são dignos de um homem honrado, que desonra a vida ao ser manipulado por ela.

Ele não é um ser que desafia a morte. Não. Ele desafia a vida continuando a viver. Transgride todas as leis naturais e continua a jornada do dia-a-dia. Seu quotidiano é sempre o mesmo, e nunca é o mesmo desafio, apenas muda o bar.

Novamente, e com toda razão, o leitor perguntaria: por que gastar tinta, papel, diagramação, fotolito, impressão com um ser tão inexpressivo? E novamente, porém diferentemente, este, que por ora escreve com uma caneta tinteiro, pois a tinta da esferográfica acabou, explica-lhes o motivo: a vida leva este pobre homem à morte, e a morte o rejeita. A rejeição da morte traduz-se em vida, e esta, maléfica e vingativa, carrega sorrateiramente este pobre homem novamente à morte. Resta, então saber, até quando? Quem vencerá? Será a vida ou será a morte?