Crime à surdina
Era noite, quase onze horas. O quarto 302 do Hotel Calígula, um hotel de beira de estrada, embriagava-se pela fumaça incessante que dançava oriunda do cigarro do seu ocupante. Ele era um homem misterioso, alvejado pela calvície, de uma estatura baixa e de uma massa corporal exagerada, sendo dono de um corpo que não despertava inveja nem no mais feio dos homens. Muito pouco se sabia da sua vida. Seu nome, Afonso, só fora descoberto por causa dos seus registros nos diversos hotéis que se albergava. Alguns diziam que era apenas um viajante adorador da vida nômade – já que não se fixava por longo período em um lugar só -; outros afirmavam que era um desses homens ricos que vivem da herança dos familiares. Isso, todavia, era apenas suposição. A única certeza sobre ele que unia os pensamentos dos curiosos era que tal homem nutria uma paixão excessiva pelo fumo.
De repente a porta do quarto tornou-se vítima de várias batidas. O homem, que se encontrava repousando na cama ao lado do seu fiel e confidente cigarro, logo pôs-se a levantar e averiguar quem seria o inoportuno convidado.
Mas a culpa da perturbação do seu descanso não era de ninguém mais senão sua. Afonso havia, há poucos quartos de hora, entrado em contato com uma dessas agências que oferece mulheres para entreter as noites e por pura desatenção esquecera a sua própria ação movida pelo desejo.
Ao abrir a porta deparou-se com uma encantadora mulher de branca tez, possuidora de um corpo destinado ao pecado, cabelos negros e olhos verdes; mas não o verde exaustivo e comum das folhas, um verde filho das esmeraldas mais lapidadas que se pode encontrar. A mulher verificou o cliente da ponta dos pés ao fio de cabelo mais elevado como se fosse um daqueles equipamentos a laser que detecta metais nos aeroportos, e logo em seguida perguntou em tom de deboche:
- Afonso é você?
- Sim, sou eu mesmo. – respondeu, ele, fechando a porta enquanto puxava a mulher para dentro do quarto.
- Só executo meus serviços com pagamento prévio. Não quero ser enganada.
Afonso disparou ofegante e cheio de desejo para uma das gavetas da mesinha do abajur que se localizava à cabeceira da cama e, de lá, retirou uma quantia em dinheiro que entregou à mulher. Esta tratou imediatamente de guardar a quantia em sua bolsa. Afonso, que já havia se apresentado à visitante sem roupa, o que lhe estampava o título de devasso dos devassos, jogou-a na cama e iniciou a sessão de prazer. Primeiro retirou cada peça de roupa dela, depois envolveu a mulher na luxúria mais insana a que um ser humano pode ser submetido.
Beirando às quatro horas da madrugada, a companheira já quase não respondia às suas investidas vorazes e sobre-humanas; pedia que parasse, mas sem êxito:
- Pare Afonso! Pare! Não suporto mais!
- Você é minha! Eu paguei e tenho direito, será minha até que minha vontade esteja satisfeita.
- Não! Não! Falo sério, sinto-me fraca; não suporto mais!
- Cala a boca, sua leviana! Você é minha!
- Deixe-me em paz, seu demônio! Deixe-me ir!
A garota de programa, desesperada, esticando um dos braços, conseguiu alcançar o abajur e bateu com força na cabeça do seu agressor, que tombou para o lado com as mãos na cabeça num sinal de dor. A mulher já se dirigia para onde estava sua bolsa, em meio a incessantes gritos de socorro, quando o homem agarrou-a pelo pulso e atirou violentamente seu corpo esgotado na direção da cama; foi quando uma das quinas da mesinha de cabeceira cumpriu o papel de co-autora de um crime desencadeado pela lascívia mais selvagem, mais degradante da condição de ser humano. Um último grito de dor se ouviu quando a cabeça dela foi de encontro à mesinha e seu corpo caiu estendido no chão ao lado do leito profano.
Afonso parou bruscamente como que chocado pelo que acabara de realizar. Olhou lentamente para o sangue que gotejava da mesinha e se unia ao pequeno lago formado às margens do corpo mais belo e sedutor que já vira em sua vida. Ele, então, numa reação desprovida de razão e sensibilidade, apenas sentou à beira da cama, acendeu mais um cigarro e admirou por determinado tempo aquela cena protagonizada pela beleza e pela morte.
Registrou-se, no Hotel Calígula, que o misterioso Afonso fechou sua conta as cinco e cinqüenta da aurora e nunca mais foi visto. O recepcionista declarou que ele parecia muito calmo ao deixar o hotel, sem qualquer aspecto de alguém que tinha acabado de matar uma pessoa, não o acompanhava um pingo sequer de inquietação; pelo contrário, era dono de uma segurança nas palavras que nem toda pessoa pode sustentar, mesmo estando sossegada. Acrescentou também que nunca desconfiaria de uma pessoa assim como sendo um criminoso.
O serviço de quarto entrou no 302 às oito horas da manhã. Das duas camareiras que presenciaram a cena uma desfaleceu; a outra relatou que ao lado do corpo, na região banhada de sangue, jazia um resto de cigarro; a cama estava desforrada com lençóis despenhando pelos lados, e o abajur, deitado, era acessório do piso.
O tão misterioso homem havia revelado sua identidade, um perfil monstruoso de um assassino.