Carpaccio
Não é comum encontrarmos seres humanos com aspectos de psicopata, no dia-a-dia. Mesmo que muitas fisionomias e muitos trejeitos despertem curiosidades acerca destes indivíduos, não podemos apenas ficar restritos a estes estereótipos.
Às vezes, fico durante horas sentado num determinado lugar, que na realidade são vários, e observo quase que atentamente o comportamento das pessoas que passam por mim. É difícil, e diria quase que impossível, acharmos um elemento que misturado a tantos seres comuns – na realidade, não entendo o por que classificamos os comuns de normais – se destaque por sua personalidade repugnante aos normais. Este ser repugnante aos normais conhece, e muito bem, os dois extremos de sua normalidade, que obviamente não é normal. Por ter contato direto com o seu “lado negro” – poderia também escrever “lado branco” – sabe exatamente a hora e o lugar para se expor.
O que normalmente os normais têm de normal, ou propriamente dito comum, é o fato de não conviver conscientemente com estes extremos das suas normalidades “anormais”.
Se eu fosse um psicopata consciente (sic), não iria me expor ao ridículo de me expor como psicopata, e, acredito que os psicopatas – e aqui não mais coloco a palavra “consciente”, pois são psicopatas por serem conscientes – se resguardem, principalmente por serem conscientes de seus estados psíquicos e sabedores que toda a sociedade dos “normais” estão a caça destes “malucos”. São inteligentes, perspicazes, astutos e jamais proporcionariam aos interessados, ou seja, a quase toda a sociedade dos “normais”, que as suas “manias incomuns” fossem desvendadas impunemente. Antes de serem descobertos fariam muitas vítimas que inocentemente passassem pelos seus caminhos.
Nos nossos dias, é comum nas grandes metrópoles que os Institutos de Pesquisas enviem pessoas, qualificadas ou não, treinadas ou não, ao campo – não é necessariamente um campo de esportes ou de guerra, mas também pode ser –, perguntando perguntas dirigidas às pessoas, que na nomenclatura destes institutos se chamam entrevistados, e são preliminarmente classificados segundo os interesses das empresas que pagaram pela pesquisa. Geralmente, saem em grupos de pesquisadores e procuram locais com alta taxa de concentração de transeuntes, onde se facilita e muito as tais abordagens.
No Terminal Santana de ônibus, São Paulo, sempre havia muitas pesquisadoras – é incomum encontrarmos um pesquisador do sexo masculino, talvez seja mais uma destas tão difundidas técnicas de abordagem –, comumente trabalhando para escolas de idiomas ou para escolas de informática, mas curiosamente, não havia nenhuma delas naquela tarde de janeiro, onde o sol ardia na face de todos aqueles que se aventuravam em não se proteger desta magnífica estrela, e ele, tanto quanto os proprietários de veículos automotores, não se importava com os altos índices de poluição registrados no ar da grande metrópole. Algumas pequenas nuvens brancas que rumavam no sentido sul-norte, e também pareciam dispersas no céu, me despertaram a atenção e a curiosidade. O fato é que elas se deslocavam com muita rapidez – ao menos naquele momento – e aqui embaixo não havia um só resquício de vento.
Repito, naquela tarde de janeiro não havia uma pesquisadora sequer no terminal de ônibus, o que também me chamou a atenção, porém, não me despertou curiosidade alguma. Pessoalmente, e digo pessoalmente por se tratar de uma questão pessoal, gosto de ser abordado por estas moças para responder a estas pesquisas. Infelizmente, e digo infelizmente sem saber o motivo verdadeiro desta infelicidade, as perguntas se dirigem geralmente ao público jovem, e embora eu me considere como tal, o certo é que tenho a fisionomia característica de um senhor não muito comum e de meia idade.
Encontrava-me sentado num dos bancos de concreto queimado, no Terminal Santana de ônibus, sem me preocupar se por ali passaria algum tipo de psicopata. Este terminal fica próximo a minha casa, contudo, resolvi repousar as minhas nádegas, e conseqüentemente, as minhas pernas nesta parada, pois caminhei desde o bairro do Ipiranga até este terminal. Quem conhece São Paulo sabe que estou me referindo a uma distância considerável. São aproximadamente dez quilômetros, e mais, passando por avenidas extremamente congestionadas de veículos dirigidos por cidadãos que se encontram num estado psíquico caótico. Aquele sol ao qual me referi há pouco, também me acompanhou nesta jornada. Aquelas pequenas nuvens brancas, as quais também me referi há pouco, também me acompanharam desde a Zona Sul (Ipiranga) até a Zona Norte (Santana) – estavam extremamente lentas.
O Terminal Santana recebe linhas de ônibus de praticamente toda a Zona Norte. O metrô integra-se a este terminal, mas isso não vem ao caso. A grande maioria dos ônibus desta metrópole são movidos a óleo diesel, combustível altamente poluente. Geralmente, o repouso deve ser acompanhado de uma respiração saudável, porém aquele local não era o mais indicado para tal propósito. O ar que eu respirava naquele momento de descanso, não era propriamente dito um ar puro. Sofria a influência do monóxido de carbono exalado pelos escapamentos de todos aqueles ônibus, que entravam e saíam do terminal. Mas como diz o ditado: “quem não tem cão caça com gato”.
Diferentes da minha canseira corporal estavam os meus olhos atenciosos. Aquela atenção tinha como motivo as curvas maravilhosas de uma mulher de cabelos dourados e olhos azuis, que acabara de se sentar ao meu lado, naquele banco de concreto queimado. Claro que ao lado daquele monumento vivo, meus olhos se esqueceriam da minha extenuante fadiga. Não que todas as mulheres mexam com o meu instinto animal, claro que não. Mas aquela mulher de cabelos dourados, olhos azuis e curvas maravilhosas tinha mais que cabelos dourados, olhos azuis e curvas maravilhosas. Tinha apoiada em seu colo uma prancheta contendo papéis, que no primeiro instante não tive a curiosidade de saber do que se tratava: era muito óbvio não ter esta curiosidade.
Todas as ruas, alamedas e avenidas são locais públicos. Também o são os terminais de ônibus e as estações de metrô. Não quero citar outros locais públicos, afinal, estava num terminal de ônibus e isso bastava.
Não é comum nas grandes metrópoles cumprimentar as pessoas que passam por nós, e nem mesmo aquelas que estão paradas ao nosso lado. Acho esta atitude uma falta total de educação e princípios, mesmo assim, não cumprimentei aquela mulher de cabelos dourados, olhos azuis e curvas maravilhosas que estava ao meu lado.
Fiquei intrigado com aquela prancheta que estava apoiada nas coxas daquela mulher, pois como escrevi anteriormente, naquele dia não existia nenhuma pesquisadora no Terminal Santana. E o que seria aquela prancheta, se não um apoio para os famosos formulários de pesquisa?
A mulher de cabelos dourados, olhos azuis e curvas maravilhosas parecia estar por demais apreensiva com alguma coisa. Os seus cabelos dourados, os seus olhos azuis e as suas curvas maravilhosas estavam em busca de alguns dados. Mas que dados seriam estes?
Não era o calor daquela tarde de verão, nem os gases poluentes daquele terminal infernal, que faziam escorrer pela minha face um suor frio, despropositado e inadequado. Não. O verdadeiro motivo que levava o meu corpo a ter aquele comportamento imaturo era a presença daquele monumento vivo ao meu lado. Como não tenho o hábito de usar lenços de papel, nem de tecido, ao chegar na ponta do meu queixo, os pingos de suor caíram verticalmente até o chão, e, rapidamente, formaram uma pequena poça, naquele chão sujo.
“O senhor me parece estar cansado”, disse-me a mulher de cabelos dourados, olhos azuis, curvas maravilhosas e magistralmente vestida com um vestido azul-turquesa, que estava colado ao seu corpo. Para combinar usava uma sandália de plataforma da mesma cor do vestido. Ela era toda azul.
_ Como? Disse-lhe embasbacado.
“Eu disse que o senhor me parece cansado!”.
_ Desculpe-me. Eu não ouvi com perfeição o que você me dissera. Não que tenha problemas auditivos – mentira. Apenas estava distraído com imagens encantadoras, que me levaram a um mundo bem distante deste terminal. Sendo assim, não entendi o que me dissera. Realmente, eu estou cansado. Uma caminhada fora dos planos e sob um calor imprudente me deixou nesse estado – esta resposta me pareceu extremamente sem sentido, mas...
“Tenho reparado que o senhor freqüenta este local com certa assiduidade. Sou psicóloga e costumo observar as pessoas, sem que estas percebam – como se isso fosse possível, pois se tratava de uma mulher com atributos físicos perceptíveis até por um cego. Sem fazer qualquer chacota com estes nossos amigos sem visão, mas é impossível não percebê-la, mesmo se estivéssemos junto a uma multidão. Meu nome é Kátia”.
_ Realmente. Venho com certa freqüência a este local, pois o comportamento humano me fascina. Por aqui, devido à finalidade de baldear passageiros, passam milhares de pessoas todos os dias. Sendo assim, trata-se sem dúvida de um local perfeito para observações comportamentais.
Sendo aquela mulher de cabelos dourados, olhos azuis e curvas maravilhosas, uma psicóloga, não poderia de maneira alguma lhe falar do motivo pelo qual eu visitava com freqüência aquele local.
Como me interessei profundamente nos cabelos dourados, olhos azuis e curvas maravilhosas, e porque não escrever da combinação perfeita do vestuário, pensei em prolongar o assunto, mas inesperadamente não houve necessidade.
“Você me responderia algumas perguntas?”.
Somente pelo fato de trocar o senhor pelo você, me deixou mais à vontade e também mais esperançoso. A esperança é sempre um estado natural dos sonhadores.
Não houve qualquer espécie de hesitação de minha parte, pois encontrei nesta pergunta uma maneira de continuar a vê-la, sem a necessidade de transcorrer por assuntos fúteis, tais como: vai chover! Que calor horrível!
_ Claro! Como posso ajudá-la?
“O ar nesse terminal está muito poluído. E também a poluição sonora provocada pelos ônibus e pelos passos dos transeuntes é insuportável. Será que poderíamos ir a um outro lugar mais tranqüilo e com menos gases poluentes, para conversarmos com mais calma?”.
Para uma pergunta inesperada, todavia agradável, necessita-se de momentos de reflexão. Mesmo que seja para refletir sobre absolutamente nada, este pequeno intervalo de tempo é devidamente importante para refrescar os sentidos mais envolvidos com tal questionamento e imagem. Passado esse instante de descontração e torpor fui taxativo:
_ Conheço um parque que fica próximo daqui. Lá existem árvores frondosas, que nos proporcionariam sombra e ar fresco, além é claro, da paz que por ora necessitamos.
“Claro!”
Durante vinte e seis minutos e trinta e quatro segundos – não possuo relógio de pulso, nem de bolso, e, descobri o tempo que durou esta caminhada contando mentalmente os segundos – andei lado a lado com aquela musa do Olimpo, ou então seja lá qual for o monte que por ora esteja em moda. Ao passar por nós, muitas pessoas nos olhavam, e, provavelmente me invejavam – principalmente os homens – por estar lado a lado com aqueles cabelos dourados, olhos azuis e curvas maravilhosas. Chegando no parque, procuramos um banco de madeira, não tão confortável, mas que pudéssemos ficar à vontade.
_ Está bom aqui?
“Maravilhoso!”
_ Ótimo!
Por um instante, e esse instante durou apenas um instante, um pensamento diabólico passou pela mente, que aos olhos daquela mulher não poderia jamais mentir, porém… E se esta musa de cabelos dourados, olhos azuis e curvas maravilhosas, de vestido e sandália azul-turquesa fosse uma psicopata e não simplesmente uma psicóloga?
Pelas estatísticas da Organização Mundial da Saúde (OMS), esta doença psíquica é mais comum entre os seres humanos – alguns animais irracionais também sofrem deste mal – do sexo masculino. Sou completamente leigo neste assunto – leio matérias em revistas científicas e em livros específicos –, e conheço pouquíssimos casos desta doença nos seres humanos do sexo feminino, porém, aquele ser humano de cabelos dourados, olhos azuis e curvas maravilhosas é um ser humano, e como tal, não estaria de maneira alguma imune a esta doença psíquica.
Seu vestido, sua sandália e inclusive os acessórios eram todos azuis-turquesa e combinavam perfeitamente com os seus olhos azuis. Os seus cabelos dourados combinavam perfeitamente com o seu corpo bronzeado pelo sol. Era uma mulher fascinante e estonteante, mas, e se fosse uma mulher fascinante, estonteante e psicopata?
“Podemos começar?”
_ Responderei aquilo que estiver ao meu alcance (mentira!).
Esta resposta é muito óbvia. Pensei, instantaneamente, em várias alternativas, porém, estava tão ansioso que resolvi falar a primeira resposta que viesse em minha cabeça e por acaso foi esta que me surgiu.
“Você tem algum trauma de infância?”
Esta pergunta é clássica dos psicólogos, independentemente do mestre que seguem. A infância é tão importante psicologicamente para a vida de um indivíduo quanto os primeiros meses de aula são para os alunos. Com certeza, a mulher de cabelos dourados, olhos azuis, curvas maravilhosas, e agora se postando como psicóloga tinha todos os motivos para fazer esta pergunta clássica. Por um instante, pensei até em não responder, porém, o que pensaria a psicóloga desta minha atitude. Os neurônios “entraram em parafuso” querendo descobrir algo. Qual seria o motivo para tal pergunta?
_ Creio que todos nós tivemos algum tipo de trauma na infância. Nela não há uma relação racional com o tempo. Os ponteiros de segundos dos relógios caminham exatamente como caminham nos dias de adulto, todavia, a vida não parece que caminha como caminha quando somos adultos. Durante a infância, o tempo caminha lentamente e os fatos não resolvidos ficam na memória. O despertar destes problemas chega quando atingimos a idade adulta. Você não acha?
A mulher de cabelos dourados, olhos azuis, curvas maravilhosas, e agora agindo como psicóloga não respondeu absolutamente nada. As minhas considerações eram anotadas num bloco timbrado com as iniciais K.S.D. Ela conseguia escrever e ao mesmo tempo me olhar. É claro, eu preferia aquele olhar azul que aqueles rabiscos psicológicos. Aliás, não sei o que ela anotava, pois não tive a mínima curiosidade em sabê-lo (mais uma mentira). Meu ser se dividia em duas metades: primeiro, aquele que idolatrava aquela musa fascinante. Segundo, aquele que tinha dúvida quanto ao estado psíquico da entrevistadora.
“Você poderia me contar sobre algum dos seus traumas?”
Além daquele cabelo dourado, daqueles olhos azuis, daquelas curvas maravilhosas, aquela psicóloga tinha uma voz tão marcante e sensual, que eu inventaria quinhentos traumas apenas para estar ao seu lado.
Quando vivo, meu falecido tio Joaquim, irmão de minha falecida mãe, sempre fora um homem muito brincalhão. Não gostava de ouvir, nem de contar piadas, porém, fazia da vida uma verdadeira piada. Gostava da solidão, embora fosse casado e tivesse uma filha maravilhosa. Seu passatempo favorito era sentar-se numa destas cadeiras de balanço – provavelmente estava defeituosa, pois nunca percebi o seu balanço – na varanda de sua casa e por horas apreciava os colibris beberem um preparado de água com açúcar, que ele cuidadosamente despejava num frasco de plástico. O bebedouro parecia eficiente, pois os colibris não tinham nenhuma dificuldade em utilizá-lo. Os enormes olhos azuis do meu tio Joaquim brilhavam com a dança dos colibris.
Era um homem forte e ligado no mundo misterioso e deslumbrante dos pensamentos. Pensar levava aquele homem a ser um ser solitário, embora sempre tivesse a companhia de sua esposa. Porém, a sua companheira mais fiel era uma garrafa de aguardente, que se esvaziava quando a noite chegava. Era um fumante inveterado e consumia quatro maços de cigarro por dia. Os preferidos eram aqueles com alta taxa de nicotina e alcatrão.
Era meu padrinho de batismo cristão, e, antigamente este título facultava ao seu titular certas responsabilidades: o direito de ser o segundo pai era a principal delas. Lembro-me perfeitamente de sua felicidade e honra ao ser chamado por mim de padrinho. Nos dias de festa – principalmente o meu aniversário, natal e dia das crianças – ele me presenteava com brinquedos maravilhosos – carrinho de pedalo, carro do Corpo de Bombeiros, arco e flecha e outros, muitos outros – comprados a preço de custo, pois ele trabalhava numa indústria destes brinquedos. Era um bom homem e melhor ainda como padrinho. Muitos garotos que moravam próximo à minha casa me invejavam, pois os seus padrinhos eram pessoas sem a mínima sensibilidade e também não assumiam a condição que o título lhes facultava, ou seja, de ser o segundo pai.
O meu falecido avô, pai da minha falecida mãe, e conseqüentemente, pai do meu falecido tio e padrinho Joaquim, faleceu quando o meu falecido tio e padrinho Joaquim tinha apenas dois anos de idade. E talvez fora este motivo que levou meu tio e padrinho Joaquim a gostar demais de crianças. Meus filhos adoravam o tio Joaquim.
Certa vez, e naquela época eu tinha aproximadamente três anos, meus falecidos pais e eu fizemos uma visita à casa do meu falecido tio Joaquim. Não íamos freqüentemente visitá-lo, pois morávamos em cidades diferentes, e na época duzentos quilômetros era uma distância considerável. Nestas oportunidades a sua felicidade era transparente, pois o meu falecido tio e padrinho Joaquim gostava e muito dos meus falecidos pais.
Lembro-me perfeitamente de um “pé de tomatinho”, que segundo a minha falecida mãe me contou, era paciente e carinhosamente cuidado pelo meu falecido tio e padrinho Joaquim, pois o plantou quando eu nasci. Nunca acreditei nesta história, pois me parecia muito verdadeira e melosa. Todavia, a minha primeira ação quando chegava à casa de meu falecido tio e padrinho Joaquim era pedir-lhe que colhesse alguns daqueles “tomatinhos” maduros para que eu pudesse degustá-los. Naquele dia, também como em todos os outros não fora diferente e pedi ao meu falecido tio e padrinho Joaquim que apanhasse sete “tomatinhos” maduros (conta de mentiroso). Prontamente, meu falecido tio e padrinho Joaquim colheu-os, e, numa atitude digna de um segundo pai, pediu-me que os lavasse antes de comê-los – é importante esclarecer que o meu falecido tio e padrinho Joaquim nunca usou agrotóxico na sua cultura, pois ele sempre fora contra a utilização destes defensivos (sic) agrícolas.
O quintal de sua casa era enorme. A gramínea plantada e plenamente desenvolvida dava um aspecto pictórico ao terreno, pois encantava os olhos observar com atenção àquela tela viva. Meu falecido tio e padrinho Joaquim plantou uma diversidade enorme de pés de frutas, tais como: goiabeira, ameixeira, jabuticabeira, várias espécies de laranja e também uma parreira de uvas niagara. Eu me esbaldava naquele paraíso frutífero, visto que, o nosso quintal era totalmente cimentado. Tinha suas vantagens, pois minha falecida mãe não teria condições físicas de limpar adequadamente um terreno similar àquele de meu falecido tio e padrinho Joaquim.
Quando meus falecidos pais visitavam meu falecido tio e padrinho Joaquim, este, consumia um número bem menor de cigarros. Meus falecidos pais não tinham qualquer restrição ou aversão ao tabaco. Provavelmente, esta atitude de meu falecido tio e padrinho Joaquim era em meu respeito, devido ao mau exemplo que fumar proporcionaria a uma criança – mais uma vez observamos o exemplo de um padrinho verdadeiramente assumido.
Meu falecido pai foi até o bar comprar um maço de cigarros para a minha falecida mãe. Minha tia, ainda viva, mostrava o seu canteiro de flores para a minha falecida mãe, que se encantava ao ver o cuidado com que a minha tia cuidava daquele pedaço do mundo, aliás, seu mundo.
Meu falecido tio e padrinho Joaquim me ajudava a lavar aqueles benquistos “tomatinhos” vermelhos e maduros.
A cozinha era pequena, porém, o espaço era devidamente adequado e bem distribuído, o que na linguagem arquitetônica se diz que é um cômodo simples e funcional. O relógio de parede – que curiosamente não ficava na parede, e sim, na porta do armário de cozinha – marcava onze horas e treze minutos em seus ponteiros. Era o momento que indicava o início dos preparativos para “fazer o almoço”. Quando os meus falecidos pais visitavam a casa do meu falecido tio e padrinho Joaquim, a incumbência de cozinhar era toda sua. A especialidade era uma macarronada ao sugo. Costumava preparar alguma carne para acrescentar proteínas ao cardápio (não creio que fosse esta a sua intenção, mas…). Retirou da geladeira uma carne muita bem fatiada e crua. Nunca eu tinha visto carne tão fina como aquela. Devido a pouca idade, não saberia distinguir uma carne vermelha de boi, de uma carne branca de frango.
Cochichou aos meus ouvidos que aquela carne era muito especial. Segundo o meu falecido tio e padrinho Joaquim, tratava-se do lombo, minuciosamente fatiado, do senhor Manoel, ex-proprietário da padaria da esquina, que havia falecido há poucos dias – morte que causou um embaraço muito grande na vizinhança, pois o falecimento não teve explicações lógicas, mesmo que a perícia tenha caracterizado a morte como “parada cardíaca”. Não sabia que os seres humanos comiam carne de seres humanos. A palavra do meu falecido tio e padrinho Joaquim significava muito para mim. Naquele momento, ele disse que aquela carne fina e vermelha era o lombo, minuciosamente fatiado do senhor Manoel, ex-proprietário da padaria da esquina. O esclarecimento do meu falecido tio e padrinho Joaquim foi o suficiente para que eu acreditasse que era verdade.
Ele acomodou toda aquela carne num recipiente contendo um molho verde. Deixou por alguns minutos aquela carne vermelha “nadar” naquele molho verde. Saboreou alguns pedaços que, segundo ele, serviriam para experimentar o gosto. Se fosse levar em conta a feição que meu falecido tio e padrinho Joaquim aparentava quando levava à boca aquela carne fina, vermelha e agora temperada com aquele molho verde, certamente acreditaria que o sabor era delicioso.
Ofereceu-me um pedaço, que prontamente recusei, pois vinha de uma educação, onde meus falecidos pais me ensinavam que jamais deveria aceitar qualquer alimento ou bebida oferecida por quem quer que fosse. Meu falecido tio e padrinho Joaquim não insistiu, pois conhecia, e bem, a educação que meus falecidos pais me deram, e, não passaria jamais por cima de suas ordens.
Sempre tive vontade de comer lombo, minuciosamente fatiado de algum português falecido, que fosse dono de alguma padaria, e, preferencialmente que ela ficasse num prédio de esquina. Todavia, com o passar dos anos compreendi que este ato trata-se de canibalismo, ato terminantemente proibido pelo nosso Código Penal, e também pela “Santa Igreja Católica e Apostólica Romana”; será que o nosso Código Penal prevê a ingestão de carne humana para fins de extrema necessidade, tais como: sobreviventes da queda de avião no meio da Floresta Amazônica; sobreviventes de naufrágio de barco, próximo a uma ilha deserta? (quanta besteira!)
A mulher de cabelos dourados, olhos azuis, curvas maravilhosas, combinação perfeita do vestuário, e agora se mostrando como psicóloga, estava ali parada e quem sabe até perplexa, pensando seriamente na resposta que eu tinha pra lhe dar.
Não sabia se deveria lhe contar sobre a história do lombo, minuciosamente fatiado do senhor Manoel, todavia, ela poderia pensar em absurdos a meu respeito, e também, sobre a insanidade do meu falecido tio e padrinho Joaquim, e então, desviei o assunto.
_Não sei se posso considerar o que vou lhe contar, como um trauma infantil. Sinto asco ao ver as pessoas mergulhando o pão seco e cheio de bromato, nas xícaras com café e leite. Minha falecida avó, mãe do meu falecido pai, uma italiana morena e de personalidade muito forte, característica das mulheres calabresas, embora ela tivesse nascido em Treviso, norte da Itália, tinha como hábito molhar o pão, que era feito em casa e sem bromato, numa cumbuca de madeira, todavia, cheia de vinho tinto e seco. Esta cena matinal nunca despertou em mim qualquer espécie de nojo.
Meu falecido avô, pai do meu falecido pai, costumava mergulhar o pão seco e cheio de bromato, comprado na padaria do senhor Dânio, numa xícara de porcelana barata – dizia ele que a tal xícara fora importada da China, no que jamais acreditei. A cena ficava mais horripilante ainda, quando o meu falecido avô lambuzava naquele pão horrível uma manteiga horrível na aparência, e também extremamente gordurosa. Ele não bebia e nem mordia o pão encharcado de manteiga. Ele, literalmente, sugava goela abaixo aquela mistura nojenta.
Até hoje, guardo na memória aquelas cenas de terror, e guardo também um asco abominável em relação a este procedimento alimentar.
Talvez, e digo talvez por não ter plena certeza, eu não fui ao velório do meu falecido avô – ele morreu logo após o Brasil ter conquistado o tri-campeonato de futebol, no México –, devido às lembranças marcantes e asquerosas que guardava dele. Só de pensar que daquela boca seca e morta poderia sair pedaços de pão seco com bromato, encharcado de café e leite, e mais, com aquela manteiga gordurosa, eu me recusei a ir naquela festa. Seria horrível presenciar esta cena. Todos me criticaram (será?) e condenaram (será?) por faltar a tão nobre ocasião, porém, o que ninguém soube jamais foi o motivo que me fez tomar a decisão tão penosa aos meus sinceros sentimentos (sic).
Alguns dias depois do sepultamento do meu avô, então falecido, soube através da minha irmã, ainda viva e gozando de perfeita saúde, que durante o velório aconteceram alguns fatos que marcaram tragicamente a festa. Não quis saber de absolutamente nada sobre o ocorrido, porém, até hoje a curiosidade ainda persiste.
Será que podemos considerar este relato sobre algo que realmente aconteceu como se fosse um trauma?
A psicóloga dos cabelos dourados, olhos azuis e curvas maravilhosas me olhava atentamente e seus olhos azuis me diziam que sabiam de algo muito importante, que provavelmente eu estava lhe escondendo.
Não havia mais necessidade de estarmos sob aquela árvore frondosa, protegendo-nos dos raios solares. O sol repentinamente tomou o rumo oeste e os seus raios não mais apareciam com tanta intensidade, aliás, nem mais apareciam.
A noite chegara e com ela a lua cheia, e também algumas estrelas da Via Láctea. Com tantos fenômenos naturais mostrando a todos que a vida pode apresentar momentos fascinantes e enamorados, tomei a liberdade e a coragem de lhe fazer um convite:
_Conheço um restaurante nestas redondezas que faz um carpaccio com alcaparras, fantástico! Você gostaria de me acompanhar?
A musa do Olimpo, psicóloga por profissão, de cabelos dourados, olhos azuis e curvas maravilhosas me olhou maliciosa e atentamente. O meu olhar foi confessor. Seria apenas para comer carpaccio?
“Vamos!”...