Tempos Distantes.


Eis que deixo para trás num povoado, uma filha e esposa com promessas de um retorno cheio de glorias, carregando no alforje charque e algumas frutas.
No ombro um rifle tosco e envelhecido seria meu guardião de defesa diante do inimigo.
Com roupas limpas e botas usadas, me junto à tropa sob o comando de um inglês de pele muito branca e olhos azuis trajando uma farda nova lindamente trabalhada e com galões de tenente.
Os seus comandados, meu parceiros, todos negros, escravos e outro alforriados como eu, dispostos a darem suas vidas em troca de liberdade e proteção a suas famílias.
Com a guerra a fome e a miséria já mostravam suas garras e o inimigo já pisava em solo do Rio Grande. Teríamos pela frente uma longa jornada com objetivo de nos unir as outras tropas e expulsar o inimigo.
Olhei para trás apenas uma vez para guardar em minhas lembranças a imagem de minha esposa e filha com olhos cheios de lágrimas num adeus silencioso, profundamente angustiante. Senti naquele momento uma vontade de correr de encontro a elas e abraçá-las mais uma vez. Baixei a vista e fingindo ajeitar um facão preso a minha cintura na tentativa de esconder de meus comparsas um choro que brotava forte em meu coração.

Na primeira parada, após andarmos o dia inteiro, acampamos próximo a algumas casas.
Os moradores daquele lugar vieram e nos deram água.
Um pai acompanhado de um filho e uma filha já moça, serviam alguns alimentos. A moça carregava uma cuia de chimarrão e parando diante de mim, olhou-me com ternura. Parecia um anjo. Tinha a pele alva e olhos verdes, com cabelos divididos em duas tranças que lhe desciam ombro a baixo até perto da cintura. Admirei-a e sorrindo ela me estendeu sua cuia dizendo:
- Tome, fique com ela pra você e beba que ainda está quentinho.
Não esperei que pedisse de novo. Agradecendo, tomei de suas mãos a cuia e bebi o chimarrão. Vi enquanto bebia sua satisfação e orgulho pelo ato que havia feito. Em pensamentos eu agradeci: “Linda menina, nunca vou esquecer de você e se um dia me encontrares sei que vai se lembrar deste dia e a mim virás como amiga dizer estar feliz com sua vida, porque sei que você será feliz em sua vida”.

Não recordo quantos dias mais andamos, mas lembro da minha ultima noite acampado ao lado do tenente inglês me falando de sua terra natal. Parecia ser uma despedida de suas lembranças e mal sabia que no dia seguinte partiríamos deste mundo e nunca mais ele em vida retornaria a sua terra, ao país de sua rainha.

Pela manhã muito cedo o clarim despertou toda a tropa e o acampamento foi levantado.
Alimentos de volta foram arrumados nos lombos dos animais. A vaca de fornecer leite pastava mais adiante e me deu trabalho pra laçá-la.
Após uma refeição minguada e guardar os utensílios, partimos em direção determinada pelo nosso comandante.
Para amenizar o cansaço e dores nos pés, vozes em couro entoavam canções afras que ecoavam por entes morros e se embrenhavam pela vegetação.
Mais adiante um descampado e ao lado um morro com arvores mais densas, escondia o inimigo a espreita aguardando o exato momento.

Um disparo se fez ouvir ecoando pelas encostas. O tenente sem um gemido caia morto do seu cavalo a meu lado com um buraco na testa. Mais disparos foram ouvidos, e gritos alarmados se misturavam aos gemidos dos feridos.
Agora, os disparos eram mais intensos e o ronco assustado de um canhão aterrorizou o restante da tropa que sem comando ficara desnorteada a mercê do inimigo.
O cheiro de pólvora se misturava ao de sangue ao meu lado. Olhei e vi um amigo que com a garganta dilacerada por um projétil, agonizava. Tinha uma expressão de pavor estampado no rosto e seus olhos pareciam que iam saltar para fora.
Meu coração batia sem compasso. Minha saliva não descia garganta a baixo e meus olhos giravam sem controle em busca de um refugio naquele inferno.
Mais adiante uma fileira de inimigos avançava sobre os poucos que ainda restavam.
Disparei meu rifle com mãos tremulas sobre eles sem ao menos mirar, tal o meu desespero em me manter vivo. Queria sair dali de qualquer forma. Não conseguia pensar com clareza.
De imediato veio a resposta.
Senti um impacto violento no meu peito, e mais dois seguidos em meu corpo me arremessaram pelo chão. Não sentia dor, apenas gosto de sangue em minha boca e o ar que parecia não querer entrar pelo meu nariz.
Mais gritos de dor se fizeram ouvir, e logo somente os passos do inimigo e seus gritos de vitória se fizeram ecoar naquele lugar que havia se transformado em cemitério sem covas.

Não sei quanto tempo me mantive vivo, tal era meu desejo de não me entregar à morte. Ouvi vozes um pouco mais adiante de onde estava. Virei a cabeça na mesma direção e vi uma mulher e dois rapazes saqueando os cadáveres.

Já respirava com dificuldades e sentia muito frio. Minha visão já não vislumbrava quase nada. Lembrei do que para trás havia deixado, e toda minha vida se passava em minha mente agonizante. Numa tentativa de ser ouvido, balbuciando com lábios sem comando:
- Filha, hei de te resgatar, nem que para isso tenha que morrer novamente mil vezes em outras vidas.

Não havia mais sol nem os campos a minha frente. Somente uma imensidão infinita que sugava meu ser a flutuar num espaço sem dimensão. Olhei para baixo e vi meu corpo ao lado de companheiros estendidos sobre o solo.
Tudo escureceu de repente. Apenas sons estranhos como cânticos longínquos foram por mim ouvidos.

Uma paz invadia minha consciência dando-me plena certeza de que apenas havia sonhado um sonho lindo de um negro que tinha o apelido de Bob, foi uma pagina de uma experiência que havia vivido.
Hoje retornei a esta vida e por ela ainda procuro sem saber onde encontrá-la. Então, fico pensando: “Terá sido realmente um sonho ou na verdade ela teria existido”?


Carlos Neves
Carlos Neves
Enviado por Carlos Neves em 06/07/2008
Reeditado em 14/08/2013
Código do texto: T1067442
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