O Ilusionista

Jonas acorda com um barulho na cozinha. Panelas espatifando no chão. Há alguém dentro da casa. Inspeciona os cômodos. Não há ninguém. Tudo em ordem. Ao se virar vê uma mulher com uma faca nas mãos refletida no espelho. Um truque barato. Ela o agarra pelo pescoço. Jonas se debate sem entender direito o que está acontecendo. A primeira facada. Sangue. Seus olhos se cruzam. E ela dá o golpe final arrancando-lhe a cabeça.

Todo mundo conhecia o Jonas. Ele se apresentava naqueles shows de ilusionismo. Era conhecido no país inteiro. Apesar de não gostar desse tipo de apresentação, eu conhecia alguns truques pela televisão. Desaparecimento. Levitação. Essas coisas. Quando ele deixou os shows de mágica para viver com aquela mulher, ninguém imaginaria que iria dar nisso. Como foi que eu o conheci? Levantei a ficha dele. Jonas nasceu no interior de São Paulo, num sítio, perdido no meio do nada. Não sei se ele estaria vivo se estivesse morando lá ainda e não tivesse virado um astro. Na verdade, não sei.

A mãe de Jonas morreu logo que ele nasceu, portanto ele nada sofreu com a morte dela. O pai, ninguém sabia quem era. Não tinha nenhum parente. O dono do sítio, o seu Francisco, quase não sabia ler, mas era uma boa pessoa, logo o adotou como um membro da família. Francisco morava com a mulher e a filha, uma menina de doze anos chamada Rita. Morar com eles acabou sendo uma coisa boa para Jonas. Desde pequeno já mostrava uma certa habilidade circense. A esposa de seu Francisco não gostava do tipo de relacionamento que Jonas mantinha com Rita. Os dois vivam juntos. Não se largavam. Ela não achava certo. Jonas não era mais um bebezinho.

"Eu era muito pequena quando Jonas foi embora. Nunca mais nos vimos. Na verdade nunca soube o que realmente aconteceu. Meu pai dizia que era coisa da minha mãe. Ela negou até a morte. Não, meu pai também já morreu. Morreu há dois anos. Câncer. O que o meu pai dizia? Ele dizia que minha mãe havia jogado o Jonas no rio. No rio da cidade. Meu pai já estava velhinho, coitado, já não batia bem da cabeça. Vivia falando coisa-com-coisa, coitado. O que havia entre eu e Jonas? Nada, maluquice da minha mãe. Ela não gostava do nosso relacionamento. Éramos muito apegados. Mas era uma coisa pura. Inocente. Nunca imaginei que fosse nos abandonar. Que se transformaria num astro."

Fui seguindo as pistas. Comprei um mapa. Vasculhei cada rancho e sítio que fazia fronteira com o rio daquela cidade. Um trabalho do cão. Há sempre aqueles que não querem falar. Não querem te atender. Gente desconfiada. Mas tive sorte. Acabei conhecendo o seu Gonçalves. Morava há mais de cinqüenta anos na região. Era um senhor simpático e paciente. Logo me convidou para almoçar. Eu estava morrendo de fome. No meio daquele mato não havia restaurante. Pensão. Eu teria que pegar trinta quilômetros de estrada até a cidade.

"Sim, moro aqui desde criança. Ganhei essas terras do meu pai, que ganhou do meu avô. Agente encontra muita coisa no rio. Boiando. O pessoal joga de tudo no rio. Por isso que tá essa imundice. Ah, isso faz muitos anos. Sim, eu e o meu filho estava pescando quando apareceu boiando. Agente pensou que tivesse morto. Levamos ele para casa. Cuidamos dele. Não sabíamos de onde ele tinha vindo. Esse rio liga mais de três cidades. Se ele falasse alguma coisa pra gente, seria mais fácil. Mas não. Também não avisamos ninguém. Talvez fosse melhor assim. Ele ficou um bom tempo aqui com agente. Um dia meu filho e ele foram para São Paulo, fazer um carreto de tomate e ele acabou sumindo por lá. Ás vezes meu filho o levava. Sim, eram amigos. Conversavam a viajem inteira. Agente sente falta de alguém pra conversar nessas estradas. Jonas? O nome dele era Jonas? Não, eu não sabia que o nome dele era esse. Ah, agente chamava ele de Zé. Eu e todo mundo lá do Mercado Municipal. Ele tinha facilidade de fazer amizade. Ah, ele conhecia muita gente. Sei lá o que deu nele. Um dia ele simplesmente sumiu."

Voltei para São Paulo, na verdade não tinha certeza de nada. Trabalhava com o que tinha nas mãos. Sim, poderia ser uma pista falsa.

Acordei bem cedo eu fui até o Mercado Municipal de São Paulo. Caminhões vindos do estado inteiro descarregavam frutas e verduras no mercado. Uma verdadeira balbúrdia. Aquilo não ia ser nada fácil. Tentei puxar papo com os caminhoneiros, o pessoal que descarregava as frutas. Não tive muito êxito. Todo mundo apressado. Mal-humorado. Gente simples de poucas palavras. Passei a freqüentar o Mercado diariamente na tentativa de entender aquela gente. Acabei me aliando aos mais velhos. Aqueles senhorzinhos que possuem suas barracas de frutas há anos, que aprenderam a arte da venda com o pai, o avô, o bisavô. Mas foi com um açougueiro do mercado que obtive mais pistas sobre o Jonas.

"Sim, faz muito tempo. Um garoto apareceu querendo me vender uma galinha. Acho que era uma galinha. Eu não compro carne sem procedência. Pode conter uma doença qualquer e fazer mal a minha freguesia. Além do que, está cheio de gente por ai vendendo de tudo para comprar drogas. Eu sou contra as drogas. Perdi um filho por causa do cigarro. O senhor fuma? Devia parar. Um perigo. Eu falo isso pro seu bem. Você é jovem, ainda tem tempo. Oi? Não, eu não comprei a galinha do garoto. Ele aparecia todos os dias por aqui. Ficava perambulando. Acho que não tinha onde morar. Um dia eu o vi conversando com um sujeito da segurança e nunca mais vi o garoto."

Fui até a central de segurança do Mercado. A atendente queria saber se eu tinha alguma queixa a fazer. Eu disse que não, que queria falar com o administrador responsável. Norberto, era o nome do sujeito. Ex-policial aposentado. Me tratou muito bem. Tomamos café. Me mostrou as dependências. Me explicou como funcionava a segurança do Mercado, as melhorias.

"Isso acontece muito. Eles aparecem para pegar as sobras, os restos de verdura. Mas não permitimos que fiquem perambulando aqui dentro, dormindo nos bancos, mendigando, aqui dentro não. É quase impossível saber. Já faz tempo. E o senhor sabe, há muitas ocorrências por dia. Um garoto com uma galinha? É... eu acho que me lembro desse caso. Me deixe ver aqui no livro de ocorrências. Lurdes! Lurdes é a minha auxiliar. Oi, Lurdes, pega pra gente os livros de ocorrência no arquivo. O senhor quer mais café? Mas qual o seu interesse nesse garoto mesmo? Ah, o senhor está escrevendo uma matéria sobre a vida de Jonas. Mas quem é Jonas? Jonas do mágico ilusionista? Ah, entendi. Mas... será? Obrigado, Lurdes. Vamos ver aqui nos livros. Bem... aqui está. A ocorrência foi feita pelo segurança Douglas. Oi? O senhor gostaria de entrevistá-lo? Infelizmente o segurança Douglas não trabalha mais aqui."

A empresa que fazia a segurança do Mercado trabalhava também com outras empresas da cidade. Com o endereço em mãos, sai em sua procura. Banco Mercantil do Piauí. Douglas fazia segurança num banco no centro da cidade. Foi fácil, era um banco pequeno. Apenas um segurança. Após passar pela porta giratória, o abordei.

"Sim, eu trabalhava lá. Nesse serviço agente acaba vendo de tudo. Uma vez uma senhora quis entrar no banco com um porco. O bicho ficou preso na porta giratória. Foi a maior confusão. Eu encaminhei o garoto ao centro de reabilitação de adolescentes. É uma entidade sem fins lucrativos. Eles estão sempre nas grandes praças informando e ajudando os moleques de rua que querem mudar de vida, que querem ter um rumo na vida. Gosto do trabalho deles."

No centro de reabilitação quem que atendeu foi Marina. Ela era formada em psicologia e foi uma das idealizadora do projeto Crianças do Futuro. O centro de reabilitação ensinava os adolescentes a ler, a escrever, cursos básicos de informática, marcenaria e cultivo de verduras. Marina me mostrou com orgulho a horta cultivada pelos adolescentes do centro.

"O excedente do que plantamos, vendemos no Mercado Municipal e todo o lucro é convertido em melhorias para o centro de reabilitação. Claro que me lembro. Pouca gente sabe disso. Jonas, o famoso Jonas passou por aqui sim. O meu namorado na época, Gilberto, que o levou para trabalhar com ele."

Gilberto era um mágico amador, fazia bico nos finais de semana como mágico e palhaço em festas de aniversário para crianças. Foi com Gilberto que Jonas começou na carreira do ilusionismo. Depois de Gilberto, ele passou nas mãos de outros mágicos. Mas foi com Raul Cavalcante que ele se tornou o grande artista conhecido por todos.

"Eu gostava muito do Jonas. Todo mundo gostava dele. Todo mundo me criticou por eu tê-lo abandonado. Mas eu não o abandonei. Foi uma decisão dele. Ele já estava cansado. Não queria mais aquela vida de espetáculo. Foi quando conhecemos aquela mulher, a Sabrina. Ela se apaixonou por ele. Ela gostava mesmo dele. Acho que ele também gostava dela. Se não ele não teria ido morar com ela. Eu não permitiria. Como eu já disse, eu gostava muito dele e o respeitava profundamente."

Não foi fácil convencer Sabrina a me dar uma entrevista. Foi mais difícil do que os tiozinhos do interior, por onde perambulei atrás de pistas, dia e noite, estradas de terra, mato. Sabrina simplesmente não queria falar sobre o assunto. Fiquei dois meses atrás dela, tentando ganhar a sua confiança. Um dia quando eu a seguia num shopping ela me abordou.

"Desisto, vai. O que é que você quer saber de mim, afinal? Já sei. Jonas. Ok. Podemos tomar alguma coisa antes?"

Fomos até a praça de alimentação e pedimos dois chopes.

"Claro que eu gostava do Jonas. Se não não o teria levado para morar comigo, na minha casa. Mas sabe como é morar com outra pessoa. Dividir a casa. A minha casa é muito pequena. Talvez tenha sido besteira tê-lo levado para morar comigo. Apesar dele não dizer nada. Eu sentia que ele adorava morar comigo. A minha companhia. Mas eu não soube cuidar dele. Essa que é a verdade. Como eu poderia imaginar que a empregada que eu havia acabado de contratar iria matá-lo daquela maneira?"

Silvia, era o nome da empregada. Havia acabado de chegar em São Paulo. Morava em Minas Gerais. No interior. Sua irmã já morava em São Paulo há algum tempo. Também trabalhando como empregada doméstica. Foi uma agência de empregos que a encaminhou à casa de Sabrina.

"Eu cheguei no endereço que a agência me indicou, era um prédio enorme de grande. Entreguei o papel para o porteiro, em seguida ele me deu a chave da dona Sabrina. Eu nunca tinha entrado num prédio antes. Foi o porteiro que me ajudou a encontrar o apartamento. A casa era pequena. Fácil de limpar. Depois a dona Sabrina ligou. Eu expliquei a ela o que eu tinha feito. Depois ela me pediu para preparar algo pra ela comer, que dentro de algumas horas ela viria almoçar. Mas eu não encontrei arroz, não encontrei comida nos armários. Na geladeira só tinha um monte de caixa congelada. O que eu vou preparar pra essa mulher comer, meu Deus? Pensei comigo mesma. Eu não posso perder esse emprego. Foi quando vi aquele pato andando pela sala. De onde saiu aquele pato, meu Deus? Não pensei duas vezes. Preparei o pato pra dona Sabrina comer"

Silvia começou a chorar desesperadamente:

"Meu Deus do céu! Como eu iria imaginar, meu Deus do céu, que aquele pato era o seu Jonas? Diz pra mim? Meu Deus! Meus Deus!"

Desliguei o gravador e interrompi a entrevista por uns instantes.

F Mendes
Enviado por F Mendes em 05/07/2008
Reeditado em 26/07/2008
Código do texto: T1066749
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.