Noves fora, nada

- Tô zerado.

Necão estava mais cabisbaixo que o normal. Seu Manoel nem ligava mais, tantas as vezes que ouvira suas lamúrias no balcão. Mas nesse dia resolveu dar trela.

- Zerado por quê, ó pá?

- A Lena. Ela foi embora. Tô zerado, portuga.

Seu Manoel deu um risinho escondido e continuou a secar os copos. “Já não era sem tempo”, comentou para si mesmo.

No quarto copo de cachaça, engatou conversa com o freguês ao lado.

- Tô zerado, amigo, perdi meu emprego ontem. E a Lena me deixou.

- É ruim, hein? – respondeu o amigo desconhecido.

- Ruim não é não, amigo. É péssimo. Tô me sentindo um zero à esquerda. Um nada.

O homem se viu transportado a uma música do Chico Buarque, mas não era o amigo pra essas coisas. Também deu um risinho escondido e voltou para sua cerveja. “Mais um pobre coitado”, pensou consigo.

Duas horas se passaram, e seu Manoel estava disposto a não servir mais cachaça ao Necão. Já via seus olhos vermelhos, olhos que estava cansado de ver avermelharem-se aos poucos naquele balcão sebento onde tantos Necões iam hidratar as mazelas mergulhando-as na sua cachaça de Pirassununga. De alambique, da boa.

- Dá mais uma, portuga.

- Chega agora, Necão. Já é muito, ouviste?

- A saideira, vai...

- Não. Toma a conta, paga e vai.

Necão olhou com dificuldade para o papel cheio de garranchos e respingado de água. Afastou-o do rosto até o limite do comprimento do braço, apertou os olhos, franziu a testa.

- Tô zerado, portuga. Semana que vem te pago.

- Eu bem que sabia... resmungou seu Manoel, sem nem desviar o olhar da pia onde lavava xícaras.

Necão saiu cambaleando. “Tô zerado”, repetia baixinho para si mesmo. Atravessou a avenida e nem reparou no ônibus. Correu gente, formou-se uma aglomeração, o trânsito congestionou. Outra música do Chico Buarque. Um médico apareceu de repente, checou os sinais vitais: nada.

Estava mesmo zerado, o Necão.