A partir de ontem

Agora não existe barulho em meu sono. Posso dormir sossegado. Não há reajuste de corpos e cobrança de dívidas diurnas debaixo das cobertas noturnas. Posso correr no torpor de meu cansaço, sem obstáculos. Não há razão para comemorar. Sem celebrações fica difícil entender se as horas passam e mesmo quando vejo o avançar dos ponteiros tenho dúvidas. Hoje não posso dizer vulgaridades, não posso cantar por ver a manhã acesa em paz, café na mesa, livro na mão e poemas. Não posso comer falando absurdos. Teus barulhos extinguiram-se. Hoje estou entregue à minha chatice, meus obséquios para comigo mesmo. Estou servindo de alvo para o destempero que são meus atos sem as lutas frenéticas de nossas carícias mais aterradoras. Machuca não ter intenção nos gestos. Não consigo justificar meus abraços e o entes amados ficam a deriva, envolvidos por braços injustificáveis. Fica decretado em estatuto que a vaga de tua presença jamais será preenchida. Que mesmo não voltando - por impertinência ou impossibilidade - não haverá outro para me reconhecer olhando para mim de onde estiveste e aquele que fui nos segundos de nossas mortes sucessivas - as sedes infinitas - estará finalmente no seu calabouço, não haverá de ver a luz do sol nunca mais e sem saber como se parece com o passar do tempo, poderá ser uma pedra ou a própria cor da tarde, uma opção para o infinito. Nesta condição, a única possibilidade de indulto é encontrar caracóis perdidos, que estes são mais lentos que o esquecimento. Esta porção de meu ser - sem o teu reconhecimento - escreverá, um dia, um romance sobre o acontecido e não haverá pessoa que não chore, não existirá dureza que não ceda diante daquela história. E quando deixarem de se encher meus pulmões e tudo for um grande e último espirar de despedida, teu nome retornará à minha boca e ao dizê-lo num riso sussurro, ficarás para trás. Resumida a um último segundo de vida, a menos de um decibél de fala, como quando dizias que jamais te perderias de mim e quase arrancando meus cabelos pedias para dizeres que eu te pertencia.

J Mattos
Enviado por J Mattos em 04/07/2008
Código do texto: T1063855
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