Velhas lembranças

Ninguém traz estrela na testa ou boi no coração. Era assim que meu avô terminava suas histórias ao pé da fogueira nas noites de lua cheia, lá nas veredas do colorido rincão. Suas narrativas nos encantavam como se fossem a mais cristalina das verdades, nossos olhos ficavam arregalados... acabrunhados eu diria.

Ah, que saudade que tenho daqueles tempos, daqueles contos espalhafatosos que cresciam de acordo com nossas expectativas e espanto! Lembrei-me de uma historieta que falava sobre a morte de duas aves de rapina. Segundo meu ele (...) certa vez campeando um velho marruá que teimava em não ir para o antigo curral da velha fazenda, avistei no alto de um jequitibá dois gaviões cabeça vermelha, dois comedores de pinto. Meu companheiro de fé, o velho capataz, olhando nos meus olhos desafiou:

__ Duvido que acerte um daqueles malandros com esta carabina enferrujada.

Aceitei a provocação de bate pronto. Sabia que podia atingir um daqueles desafortunados sem a menor dificuldade. Desci do cavalo, um alazão marchador de quatro anos de idade, de crina aparada e porte atlético. Amarrei-o no esteio da porteira, um tronco de aroeira, para que não fugisse com o estampido que sairia de minha arma e me deixasse a pé. Olhei para o alto, o sol crivou meus olhos, naquela posição era impossível. Caminhei dois passos para a direita, encontrei um ângulo mais apropriado para a mira. Uma galha de jatobá abrandou a intensidade da luz, permitindo que eu avistasse as duas vítimas com perfeição. Tirei a arma que estava amarrada à cabeça do arreio, passeei as mãos por toda sua extensão. Cada milímetro foi apalpado e conferido no mais refinado cuidado. Olhei para o tambor onde as balas ficam armazenadas. Para minha tristeza só havia uma munição, não teria uma segunda oportunidade. Não podia sequer pensar que poderia errar. Se isto acontecesse minha reputação de bom atirador estaria abalada para sempre. Todos na fazenda iriam fazer gozação com minha pessoa, todos iriam querer me desafiar para outras aventuras. Prendi a respiração, o alvo era móvel, eles não ficavam mesmo quietos, ainda mais que o vento estava soprando forte, isto fazia o galho onde eles estavam balançar com mais vigor, para baixo e para cima. A sensação de que poderia cometer um erro fez minha adrenalina subir ao cérebro, o suor escorreu em meu rosto como uma foice que risca o chão tirando fogo das pedras, meus dedos estavam petrificados. O velho capataz resmungou... “Amarelou”? Naquele momento minhas mãos pegaram fogo. O gatilho estava em brasa, o vento havia parado por um segundo. Os dois gaviões estavam na alça de mira, lado a lado, cabeça com cabeça. Em voz baixa contei... Um, dois e... Pimba! Sem dizer nada amarrarei a espingarda na cabeça da cela com um sorriso disfarçado, conferi a barrigueira do arreio, montei já com a espora na virilha do animal que imediatamente levantou as orelhas e saiu bufando pelas ventas. Quando olhei para meu companheiro vi que ele estava com os olhos esbugalhados de espanto. O temor estava estampado em sua face enrugada e ressequida. Os dois gaviões caíram repentinamente. Foi como se um asteroide chocasse com a terra. O impacto foi seco, nenhum gemido, nenhum grunhar escapou daqueles corpos. A bala parecia ser a mesma que matou Kennedy. Os quatro olhos, das duas ex-aves, estavam trespassados. Os dois defuntos, jaziam inertes no chão. Hoje arrependo profundamente de ter aceito o desafio, sabia que aqueles coitados não teriam a mínima chance de escapar da minha pontaria, sabia que eram presas fáceis para uma carabina de quatorze tiros. Infelizmente ninguém traz estrela na testa ou boi no coração.

Esta história, conto para os meus netos e bisnetos. É como se me visse ali no lugar deles, sentados, boquiabertos. O encantamento é o mesmo, a inquietude é a mesma, os gaviões são os mesmos... de sempre.

Pedro Cardoso DF
Enviado por Pedro Cardoso DF em 03/07/2008
Reeditado em 01/11/2017
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