O Dom
A discussão seguia acalorada. De um lado, Anselmo, ex-funcionário aposentado do museu municipal, de outro, ninguém menos que Dom Quixote de La Mancha. Anselmo, apesar da voz falha, bradava, indignado:
- Não adianta insistir. Humpf! Para mim, sem objetos antigos, esculturas, móveis, pinturas e fotografias, isto aqui nunca será um museu! Só vejo computadores e telões. Os filmes, as animações computadorizadas e os hologramas como você, meu caro Quixote, são meras reproduções do passado, e não os resquícios dele.
O holograma, ou Dom Quixote, era um castelhano de compleição frágil mas imponente, e vestia uma armadura enferrujada de cavaleiro medieval.
- Mui bueno, señor Anselmo, mas os museus como o senhor conheceu estão destinados a virar peças de museu. Sem financiamento, é difícil preservar e manter seguros os objetos do passado. A tendência é que os museus maiores adquiram as peças dos menores antes que desapareçam. E, como são poucos os que podem visitar os grandes museus em todo o mundo, a realidade virtual trouxe a possibilidade de qualquer um acessar as obras de arte e os objetos do passado, preservados ou não, reais ou fictícios, com a opção extra de interagir em tempo real com personagens como eu. É a tecnologia ajudando a preservar a história.
- Interessante. Mas o que o senhor diria, sendo um cavaleiro aventureiro e sonhador, se acreditasse em algo diferente do que acreditam as outras pessoas? Lutaria uma batalha sabendo que poucos estariam a seu lado? – perguntou Anselmo.
- É óbvio que sim. O dom cavalheiresco existe independentemente da aprovação externa. O cavaleiro luta por valores e ideais eternos e acredita que a maior honra está nos combates mais difíceis.
- Então, a minha luta será pelos museus! Se reunir as informações do passado em um único lugar facilita o manuseio, também facilita a deturpação e a destruição. É perigoso confiar o passado às mãos de poucos. Quem garante que o Dom Quixote de amanhã será igual ao original, de 1605? Nem você me parece tão fidedigno com todo esse palavreado moderno! Quem garante que não vão mudar o passado, por puro capricho?
- Já mudaram inúmeras vezes, señor Anselmo, mas poucos se dão conta disso.
Retirado de www.jefferson.blog.br