Uma Nova Chance para Silvana

- Meu Deus! – gritou Silvana, as mãos instintivamente protegendo o rosto, soltando o volante do carro sem controle, que se precipitava contra o enorme paredão de pedra.

Em seguida, o barulho, dor, muita dor pelo corpo todo, depois uma vertigem, como aquela que se sente quando, de estômago vazio, sentimos o solavanco de uma montanha russa. Sentiu o corpo rolar, dar uma cambalhota, talvez. Era difícil precisar a direção do movimento, mas estava certa de que fora lançada através do pára-brisa.

Depois nada. Absolutamente nada. Silêncio. Escuro. Morri... Não foi um pensamento solto, uma divagação. Também não era a simples constatação do inquestionável fato de que ninguém jamais sobreviveria a uma batida daquelas. Era uma certeza. Um fato. Sentiu-o em cada centímetro do seu corpo. Corpo? Tentou apalpar-se. Sim, estava lá. Havia um corpo. Era diferente, um corpo meio gelatina, mas era um corpo. Estranho... Acho que daqui a pouco vou acordar num hospital, cercada de médicos por todos os lados. Anísio e as crianças sentados ao lado da cama, os rostos encrespados de medo e preocupação. Mas não. Havia a certeza da morte. Era mais palpável do que o próprio corpo que carregava consigo. Tentou respirar. Não, não havia respiração. Aspirou delicadamente, nada, depois, com mais força. Sentiu um ligeiro mal estar, mas não percebia a existência de ar. Morta... E a luz? Lembrou-se dos depoimentos de pessoas que voltaram de pequenos estágios de quase morte, e que sempre falavam da grande luz, ao fim de um corredor escuro. Haveria mesmo a luz? Ficou esperando alguns instantes, atenta a qualquer coisa diferente que pudesse acontecer, mas não viu nada.

Resolveu levantar-se. A dinâmica de seu pseudocorpo era diferente, fazendo-a cambalear com um pequeno descontrole das pernas. Desengonçadamente, foi, aos poucos, conquistando o domínio de si, até que conseguiu encetar alguns passos. Percebeu que o ambiente em que estava era mais denso que o ar. Vencia aquele estranho meio com dificuldade, como se estivesse dentro de um tanque de água. Também não havia chão, o que lhe causava um certo desconforto. Mas não podia mais esperar que alguma coisa acontecesse. Precisava seguir, sair dali. Aquele imenso vazio escuro a incomodava.

Seria um sonho? Lembrou-se de ter lido uma vez, que é impossível ler nos sonhos. A leitura se dá com um dos lados do cérebro, enquanto os sonhos são gerados pelo outro. Procurou, no bolso da calça, a carteira de cigarros. Pegou-a. Apesar de toda a escuridão, pode ler com clareza, as pequenas letras douradas no cantinho do pacote: “O Ministério da Saúde adverte: fumar faz mal à saúde”. Teve que rir. Saúde agora era uma preocupação meio sem sentido.

Sonhando ela não estava. Ou, então, aquela reportagem era pura balela. Ainda restava esta dúvida. Resolveu voltar até o local do acidente. Precisava certificar-se do que acontecera. Só acreditaria na inexorabilidade da sua própria morte quando visse seu cadáver. De qualquer modo, a idéia de ter morrido não era de todo ruim. Não sentia medo. Não sentia frio, nem tampouco solidão, a solidão que há anos se abatera sobre ela, mesmo quando cercada de gente, do marido, dos filhos. Aquela sensação de insatisfação, de não saciedade que a torturava sempre, mesmo após as refeições, mesmo após fazer amor. Ao contrário: agora, morta, sentia-se de excelente humor. Tudo lhe parecia leve, divertido.

De repente, sentiu-se bater em alguma coisa. Não uma batida seca, mas a sensação de que a densidade do ambiente mudou para maior. Esforçou-se para superar a resistência que tentava impedi-la de seguir em frente. Como quem empurra um armário grande e pesado forçava passagem com um dos ombros. Foi quando ouviu os sons: vozes, sirenes, buzinas... Estacou por um instante, ansiosa, procurando identificar sua origem, tentando distinguir palavras, sem sucesso. Redobrou seus esforços, acelerando o passo, até que venceu de uma vez toda a resistência e acabou sendo lançada para fora da encosta de pedra, caindo estupidamente de cara no chão. Sim! Agora havia chão. E cascalho, mato, algumas flores... Então era isso... O nada absoluto era apenas o interior da rocha. - pensou. Agora que a atravessara, estava no mundo que conhecia.

Os ruídos que ouvira antes, agora estavam bem mais fortes e ela decidiu ir em sua direção. Percebeu que saíra por um outro lado da pedra e começou a rodeá-la até que as luzes de faróis e sirenes começaram a aparecer por entre as árvores e arbustos. Então, viu seu carro. Ou o que restou dele, um enorme bolo de ferro retorcido, cercado por bombeiros, polícia, curiosos. Certa de que ninguém poderia vê-la, aproximou-se despreocupada e pode ver o lençol cobrindo alguma coisa no chão que poderia ser o seu corpo, não fosse o estranho formato que em nada lembrava um ser humano. Fazia sentido, o acidente fora feio mesmo. De repente, o grito:

- Meu Deus!! O que é isso!??

(Continua...)