REI DO ABSURDO

Com exercícios de volta à calma, o atleta estava findando seu trabalho de preparação física para uma competição cuja data se aproximava. Todos os cuidados para manter corretamente os movimentos eram obedecidos. A estrutura muscular precisava ser acionada de modo correto. Isto era o básico para o corpo como um todo acatar as ordens vindas do cérebro e executá-las com precisão. Que maravilha! Tudo funcionando de modo perfeito. O comando e a execução. Afinal de contas, o atleta, nada mais era do que um belo exemplar do gênero “Homo” da espécie “sapiens”. ( Espécie humana)

A grama verdejante emoldurando a pista de atletismo foi um convite ao atleta para um rápido descanso. Sentou-se. Exercícios respiratórios cadenciados eram feitos meticulosamente. Gotas de suor brotavam dos poros de várias partes do seu corpo. Vez por outra, com um movimento lento, o atleta passava a mão, como que a secar os fios do liquido que lhe faziam cascatas por suas dobras naturais. Instantes após, passava as mãos no calção, que mesmo úmido, lhe dava a sensação de tê-la secado.

Num dado instante, quando automaticamente fazia o movimento de secar a mão, após passá-la na parte da coxa que estava apoiada na grama, ouviu um apelo:

- Um momento!... Calma lá!... Você vai acabar com a minha vida!

- Quem falou?... O atleta surpreso levou a mão próximo aos olhos e antes de se dar conta do que estava ocorrendo, foi de novo atropelado por um apelo contundente:

- Olha eu aqui!... Aqui ó!... Na sua mão, bem perto do seu polegar.

- O que?... Como?... Seu ponto insignificante, é você quem está falando?

- Sim... sou eu mesmo. E daí? O que você acha de estranho?...

- Para!!!! Eu com certeza me passei nos exercícios, estou estafado, e conseqüentemente, sonhando acordado ou minha mente está em desajuste. Falou o atleta.

- Por que esta soberba? Por que não admite estar dialogando comigo?

- Mas seu ponto, você em primeiro lugar deve ser um desvio de minha capacidade visual. Em segundo lugar, deve ser fruto de uma miragem, dado o meu cansaço físico.

- Bem, seu atleta, você é realmente presunçoso. Por que insiste em não me admitir?

- Você não existe. É só isso.

- Ah! É isso? Mas se você me identifica como um ponto e responde minhas falas, por que insiste em não me admitir?

- Digamos que fiquei estafado, adormeci num repente, sonhei bobagens e logo retomarei meu andamento normal, desvencilhando-me de uma fantasia que me veio não sei de onde. Falou o atleta.

A chuva que caíra dias antes havia produzido várias poças de água pelos gramados do estádio. Uma que outra durara mais tempo, até ter sua água evaporada pelo sol da primavera, cujo calor se fazia sentir naquela manhã. Em algumas dessas poças mais duradouras, colônias de protozoários ( seres vivos formados de uma única célula ) haviam se desenvolvido. Poucos sobreviventes haviam ainda nas partes mais úmidas destes pontos de acúmulo do líquido pluvial, que estavam em fins de secagem. Estes, num esforço máximo, buscavam vida nas partes das folhas de grama que ainda conservavam alguma umidade. Era irremediavelmente a morte em questão de algumas horas, ou até mesmo, minutos. Assim, um desesperado “Paramecium” (tipo de protozoário, ser vivo uniceluar) foi parar naquela mão atlética, por mero acaso de estar justamente onde sentara o atleta.

Confuso, o atleta sem entender bem se havia falado ou pensado olhou para sua mão aberta fixando a visada no seu dedo polegar. Não é que ali estava mesmo um minúsculo pontinho, que movia-se na umidade e, que fora parar na sua mão pelo contato com as folhas da grama?

- Bem, é você que me fala mesmo? Nem consigo acreditar...

- Pois não acredite por querer e sim por admitir a realidade. Eu estou aqui.

- Então, vou admiti-lo seu insignificante, mesmo com alguma incredulidade, pois por vezes, duvido que o esteja vendo.

- Mas, seu atleta, que presunção. Como você é cheio de si, e tanto, que talvez pense ser o rei da criação.

- Olha aqui, seu insignificante, nisto você disse alguma verdade.

- Qual?

- O rei da criação.

- Como assim?

- O homem é realmente o rei da criação.

- Por que?

- Veja a sua insignificância. Desde o seu tamanho, formas, locomoção, funções vitais, e por aí se vai... O homem, espécie da qual orgulho-me de ser um representante, é o mais complexo dos seres vivos.

- Não vejo o porquê, de estas razões lhe darem uma coroa, seu atleta.

Então, com uma descrição de si próprio, o atleta foi fazendo, de modo pernóstico, fluir toda sua arrogância e superioridade. Falou da complexidade de seus tecidos de formação, os quais continham cada um, uma quantidade inimaginável de elementos do tamanho daquele “Paramecium”. Descreveu a locomoção e seu comando. Pormenorizou a especialização de cada órgão e sua participação nas suas funções vitais. E por fim, gabou-se da capacidade de usar as funções cerebrais, exercendo comando sobre o físico,coisa que nenhuma outra forma de vida no planeta é capaz de fazer.

Quando o atleta terminou toda sua explanação, durante a qual o “Paramecium” somente se limitou em ouvir, lembrou-se de fitar de fato, novamente, seu companheiro de diálogo. O outro por sua vez, já se encontrava em situação de fim de vida, pois o calor da mão do atleta, que por sua vez estava aberta ao sol, havia secado quase por completo a umidade de que o minúsculo ser precisava. Eram seus instantes finais de vida, caso não viesse a cair, pelo menos, em uma gota de água.

- Bem, majestade!... Falou o moribundo. Não vejo o porquê de ter gasto instantes preciosos de minha vida ouvindo-o arrogar-se. Ouvi-o durante todo este tempo de minha vida e disso, nada lucrei.

- Como assim, seu insignificante?

- Fiquei a ouvi-lo porque esperava aprender algo, único sentido de se gastar tempo de vida, e isto não aconteceu.

- O que você sabia de tudo que me esforcei em explicar?

- Tudo.

- Mas, ...

- Sim seu “Homo sapiens”, rei da criação. Tudo. E nada que você faça para sobreviver, em sua complexidade, é diferente do meu mecanismo de ação de vida. Respiração, alimentação, excreção, locomoção, reprodução, tudo isso eu faço com esta única célula que é meu corpo. Por isso, você me vê deste tamanho. Minúsculo. Na realidade, além desta situação inusitada, em que o escritor intermedeia nosso encontro e diálogo, você nem consegue me enxergar.

- Como você faz tudo isso?

- Minha única célula é especializada para todas essas funções. E tem mais, você na sua arrogância precisa de incontáveis células para formar um tecido, vários tecidos para formar um órgão e vários órgãos para formar um aparelho, por exemplo, o respiratório. Toda essa parafernália que você precisa para uma única função vital, eu faço com um cantinho de mim, especializado para isso. Então, meu caro, dependendo do que se fala, eu lhe pergunto: na realidade, quem é o mais complexo, você que precisa de tanta coisa, ou eu, que assim como sou faço tudo que necessito para viver?

- Bem!... Bem!...nisso daí eu até me ponho a pensar..

- Daqui a pouco, quando eu não existir mais, seu atleta, você continuará pensando... pensando... e pensando logicamente chegará a algumas conclusões sobre as quais não voltaremos a discutir.

- Viu, agora você chegou no ponto final da sua mísera resistência. Admitiu minha majestade. Rendeu-se. Concordou com a minha superioridade admitindo minha capacidade de pensar.

- Sim, seu atleta, admiti infelizmente sua capacidade, mas não a minha derrota.

- Então, você que me chamou de arrogante, faz agora o reverso da situação, ou não está tentando ser arrogante?

- Seu atleta, engana-se nisto daí. O infelizmente dito por mim reporta-se não a sua capacidade de pensar, mas sim, ao uso que você faz dela.

- Como assim?

- Simples. Veja o mundo a sua volta, seu atleta. Há fome, há miséria, há violência, há destruição, a natureza definha, o planeta está morrendo. E é a sua espécie a responsável pela catástrofe que está se preparando para um desfecho final. Que adianta ser um rei ? Um rei que vive a destruir seu reino? Não acha isso um absurdo?

E dito isso, o “Paramecium” não teve tempo para mais nada. Findara sua tênue vida.

O Atleta, ficou com a sensação de ter acordado recente. Trazia na lembrança uma sensação de ter se entremeado pelos caminhos do imaginário. O cansaço o fizera adormecer por alguns instantes, com certeza. Entregue às contestações e contradições que lhe agitavam os pensamentos, surpreendeu-se, pois estava argüindo-se sobre a complexidade de seu ser... “De onde saiu mesmo esta história de rei da criação?”

Marcos Costa Filho
Enviado por Marcos Costa Filho em 29/06/2008
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