OLHOS ENVIESADOS

Olhou bem nos seus olhos estrábicos e desviou imediatamente, atolando a cabeça entre os ombros tensos.

_ Para a viagem? Perguntou ele, simpático, a língua passeando pelos lábios, umedecendo.

Balançou a cabeça positivamente concordando sem saber que tipo de viagem ele se referia: dali até a sua casa de volta, o que mais poderia ser?

Os sonhos estavam empacotadinhos dentro de um embrulho marrom, mas antes, bem antes pôde ver o rosto dele entrando no vidro do balcão, a língua novamente insinuando entre os lábios, as mãos enluvadas catando os sonhos.

Agora seus olhos estrábicos sorriam àquela distração, afinal o estendia o pacote marrom.

_ obrigado – respondeu pronto e pegado o pacote, e não soube por que achou que ele gargalhou, mas fora de alguma coisa de alguém que ele não vira, bem atrás de si, falara.

Abriu o pacote, e os sonhos se encostavam, unindo-se sobre os doces que saiam das rachaduras; catou um com mão delicada e levou a boca empurrando tudo com uma boa e forte dose de café fumegante; sentou-se no sofá por cima das pernas dobradas.

Sonhos, três sonhos, um pouco dormidos, havia sido sincero o rapaz branco, de olhos estrábicos; não, não, quem achara dormido fora o próprio que os levara. Mas sonhos podem ser de outra forma?.Deita-se e dorme, as pálpebras cerram antes do sono tombar; o corpo relaxando, os pensamentos não, e o rosto dele entrando do vidro do balcão; os olhos estrábicos desviando, as mãos peludas prensadas pelo plástico das luvas, acertando sonhos: três, sonhos pequeninos, com recheio ínfimo e delicioso; a língua dele passeando pelos lábios entrecerrados, o olhar desencontrando, mas acertando a posição dos sonhos para dentro do pacote marrom, talvez uma última conferida.Pedira, também, que carregasse com carinho o embrulho, e mesmo foi seguindo obediente, com o embrulho sobraçado, mas com a leveza dos braços muito finos, olhando com ar devasso para os que passavam e admiravam-se de vê-lo andar com tanto cuidado.

Parece pisar em ovos - podia acreditar estar ouvindo cochichar dois velhos sórdidos dentro de um botequim, regulando cada qual um copo com cerveja já choca a mão.

O grito de uma ave cortou o céu e fê-lo lançar o olhar assustado para esse anil, acreditando que um gavião aterrisasse e caísse sobre seu embrulho, levando-o como aquela coruja enorme que roubara o Pinochio do velho Gepeto. Mas não sobraçou com força, embora os empurrasse com ignorância de um café quente e quase amargo goela adentro, e de pálpebras cerradas, o sonho – com seu doce – travava agora como se a garganta estivesse quente.

O rosto dentro do vidro piscara assim como quem diz: “Olha daí de fora como é aqui dentro”, sim e seus olhos chegaram bem próximos e os dele desencontravam estrábicos, como um peixe boquiaberto dentro de um aquário; os dedos do que estava do lado de fora se agarraram ao vidro como ventosas de um réptil. Os olhos se desencontravam, as mãos buscando os sonhos recheados, e os olhos se encontravam num sorriso, sim sorriso de malícia, porque estava exposto como um peixe vermelho-vivo dentro de um aquário, e no dia seguinte, desperto, teve a fecunda confirmação porque lá estavam os olhos estrábicos se desencontrando, o sorriso surgira e desaparecera no que quase uma das mãos peludas fora coçar a nuca e desta vez apenas assentiu, nem tanto com a cabeça, como se fosse apenas com a ponta do nariz, e antes e depois começou a assobiar inquietamente e contínuo...

Rodney Aragão.