LICANTROPIA

Sempre aquelas horas da noite, isolava-se na prisão de um quarto, buscava na altura do guarda roupa o empoeirado estojo onde cabia um antigo segredo. Então, soltando travas, decodificando fechaduras e fazendo ranger dobradiças, colhia do seu aveludado interior um envernizado e senil violino, trazido pelo bisavô da toscana Durante a grande imigração italiana

Assim, enclausurado, faziam meses que ensaiava aquela sonata de Paganini, não havia nela nota desconhecida, sabia todas as colcheias, breves e mínimas, mas ainda faltava algo que não fosse matemática. Estava tudo ali, na cabala complicada de uma amarelada partitura, porém sentia mesmo que o segredo transcendia a sua erudição. Perdeu horas repetindo a mesma passagem, e a paciência, após tanto tempo, parecia perder-se aos poucos na brasa de uma nascente insanidade.

Até que por obra do destino, essa terrível superstição, enquanto a máquina do seu corpo repetia insistentemente os mesmo gestos sobre cordas e madeira, uma aranha desceu discreta e traiçoeira do forro, aterrisou em seu pescoço e desferiu uma demoníaca picada no seu pescoço pálido. Deu um grito de dor e por uma combinação perversa, com o reflexo acertou com a canela na cama ao lado, abaixando cabeça com força, a testa rasgou dolorosa no canto da escrivaninha e enfim sua mulher entrou no quarto e lhe disse impropérios, reclamando silêncio, balbuciando qualquer coisa sobre o ultimo capítulo da novela a qual não consegue se concentrar por causa da maldita e cotidiana sonata.

Então, olhando fixo nos olhos da esposa, feito um bicho, com pescoço em brasa, canela pulsante e fronte tomada de sangue, sem nada responder, sem largar qualquer suspiro, reteve o ar no pulmão, enrijeceu as vísceras e arrastou o arco sobre as cordas conseguindo uma nota longa e incandescente feita um uivo, sorriu maravilhado com o que ouviu, era paganini! acabara então de desvirginar o segredo da complicada esfinge sonora e cheio de paixão levantou da cadeira e beijou sua esposa, confusa e de olhos esbugalhados, como a tempos não beijava antes.

Den
Enviado por Den em 27/06/2008
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