Bonança
A noite avança, acompanhada pela escuridão. Espessas nuvens correm o céu sem destino, porém, apressadas. Em algum lugar da cidade, num galpão no meio do nada, há uma alma confusa, perdida.
Envolto em trapos imundos, lá está ele: grandes olhos negros, perdidos na imensa escuridão. Procuram algo ou alguém: um inimigo, um amigo; quer fugir do frio. Os olhos destacam-se no mar de ébano a sua volta. Encolhe-se ao máximo, em busca do calor, do alívio. Outros olhos, agora vermelhos, e sons ininteligíveis, o amedrontam. Ratos passeiam pelo galpão. Fecha os olhos. Talvez assim eles desapareçam. Abre-os, e eles ainda estão lá e em número maior. Todos parecem fitá-lo, apenas esperando o melhor momento para atacar.
O vento uiva lá fora, ecoando no galpão. O chiado aumenta. Os pontos agitam-se, nervosos. O frio acentua-se, fazendo-o encolher-se mais ainda. Seus lábios tremem, os dentes rangem; os olhos, inquietos na vigília, não param. Suas rudes mãos procuram o conforto do calor entre as pernas feridas.
A chuva começa devagar, o vento volta mais forte. Fora do galpão, restos do que uma dia foram árvores, perdem suas últimas folhas, seus últimos sinais de vida, criando um cenário tétrico.
Os pingos ecoam no teto de zinco, mais parecendo trovões. Pequenos riachos formam-se dentro e ao redor do galpão. Alguns ratos correm para protegerem-se em suas tocas, com suas famílias. Ele acha muito engraçado : “até os ratos têm família”, pensa. Um sorriso amarelo, querendo enganar à fome, ao medo, ao frio e, principalmente a si mesmo, desponta em seu rosto.
Recorda, com pesar, da época em que havia uma cama quente e um cobertor macio. Mas isso foi há muito tempo. Foi antes que sua esposa e os ditos amigos percebessem que ele já não era tão especial, por que não tinha um contracheque no final de cada mês, há algum tempo.
Suas lágrimas rolam no rosto marcado pela vida e vão juntar-se às gotas da chuva, que caem por uma fresta no teto prateado. O cheiro de terra molhada agrada-o, distraindo-o por um instante.
Os trovões gritam, lembrando que a noite não será fácil para aquele miserável prostrado no chão úmido. Sente algo roçar-lhe as pernas nuas. Uma pontada de dor flui da garganta em forma de grito, reavivando-a cada eco. Com o pouco de luz que a Rainha da Noite o presenteia, ele vê que está ferido. A hora do ataque chegou.
Um misto de sangue e água forma-se ao seu lado, criando poças escarlates, que reluzem à luz da noite. A fome, o frio e o medo minam seus últimos resquícios de força. Mais uma vez sente o roçar nas pernas, mas em vários pontos. As lágrimas continuam a escapar-lhe pela face.
Não esboça a mínima intenção de reagir, seu rosto continua inexpressivo: nem dor, nem fome, nem medo. Os olhos, bem abertos, perdem-se no infinito das trevas do galpão. Cada pingo é um trovão.
Os ratos dilaceram sua pele, vorazmente. O chiado aumenta. O vento uiva, a chuva não para. Com as mãos cruzadas sobre o peito, espera o fim rápido e certo. Os pontos vermelhos movimentam-se nervosos ao seu redor. Sente suas pequeninas garras sangrando-lhe o rosto, os quadris, os pés. As lágrimas cessam. A chuva continua.
A respiração torna-se quase inaudível, os olhos fecham aos poucos. Agora é só uma questão de tempo até que ela chegue, suave e impiedosa, a maior companheira dos miseráveis : a Morte.
A água invade o galpão formando um pequeno córrego que se espalha de modo irregular pelo terreno. Ele já não pensa em mais nada, apenas aguarda.
“Agú !” Os jogos infantis vêm-lhe à memória , numa das raras fases de sua vida em que fora realmente feliz. Delirando com a febre, não sabe se treme por causa do frio ou de um súbito calor que faz seu sangue ferver nas veias.
“Seu rei mandô dizer...” Que ele irá viver, que irá acordar e rir muito daquele pesadelo, ao lado de sua amada esposa; que ele não é aquele ser decadente, excluído do circulo dos bem quistos por causa de alguns reveses da vida e que ele não está sangrando, que não sente dor, que o fim daquele tormento é apenas um abrir de olhos, para que descubra a si mesmo em sua cama.
Em meios às infinitas sensações, acredita ouvir passos, que aproximam-se. Um odor acre o perturba. Com esforço, abre os olhos. Uma silhueta indefinível apresenta-se a sua frente, encarando-o. Não consegue enxergar-lhe o rosto, a cabeça parece coberta por algo que lembra uma capa de chuva.
- Pronto ? - tem a impressão de que entende, mas não “ouve” a voz. Apenas sente-a. Não consegue falar e, como resposta, apenas pensa.
- Pronto "prá" quê ?
- Para ir comigo.
- Com você ? "Prá" onde ?
- Para um lugar onde não há dor, nem sofrimento. O que você acha ?
- Ótimo. - responde, sem hesitar.
De início, sente uma dor horrível, como se arrancassem cada membro do seu corpo um a um e, logo após, uma paz imensa. Contempla as gotas da chuva, que atravessam-lhe como flechas. Seu corpo continua inerte no chão, servindo de banquete para os ratos. Lamentando , ele procura a estranha visitante, e a encontra a sua frente, sorrindo.
- Quem é você ?
- Quem sou ? Bem, alguns me chamam de "Alívio", outros de "Solução", mas a maioria me conhece pelo meu nome : Morte.
Aturdido com a resposta, olha mais uma vez seu corpo estendido, acompanhado por vários pontos vermelhos, que mudam de lugar a todo instante. Gostaria de chorar, mas as lágrimas de outrora já não acariciam seu semblante amargurado:
- Bem, e agora ? O que acontece ?
- O que prometi. O lugar do qual falei.
- E quando vamos ?
- Imediatamente. - sua visitante põe a mão em sua cabeça - Tente, se puder, perdoar todos aqueles que um dia fizeram ou desejaram-lhe o mal e arrepender-se do que chamam de Pecado.
Lembra de sua esposa, linda e gentil, forte e traiçoeira, que lhe deu amor, sexo e fel. Os amigos, que cantavam à amizade infinita madrugada afora, em bares e festas: companheiros de alegrias, tristezas e da omissão, quando mais lhes necessitou a ajuda.
Tenta, em vão, não odiá-los. Não desejar que tenham um fim tão horrendo e humilhante quanto o seu, devorado por ratos, morto pela fome e pelo frio: “que sofram mil vezes cada segundo de dor que senti! - deseja - e que morram à míngua , assim como eu.”
O vento, em coro com os trovões, grita. A chuva continua, impiedosa. As folhas dos coqueiros balançam com fúria. Os ratos correm de um lado para outro, exibindo manchas de sangue pelo corpo; o mesmo sangue que forma uma poça, ao lado do corpo inerte.
Diante daquela macabra cena, ele pergunta se foi um ser humano tão desprezível, a ponto de merecer tal martírio.
Não há resposta.
- Vamos, decida . O tempo está no fim. - alerta a Morte.
O ódio ainda o seduz, a vingança o excita. Ver todos aqueles que levaram sua vida àquele desfecho sofrerem, rastejarem , humilharem-se. Todavia, em seu insano sonho de justiça, percebe que se tornou o algoz de seus algozes, o que nunca desejou em vida.
Olha mais uma vez o que um dia foi seu corpo e pergunta-se quando aquilo terá fim. Como podemos ser perdoados, quando ao menos tentamos perdoar?
A esposa e os amigos despertam novamente sua atenção. Os enxerga agora não como traidores, mas como meros seres humanos e, por isso, passíveis de erros, dos mais inofensivos aos mais graves. Seres fracos que precisam de ajuda , de conforto para suas almas doentes.
Da mesma forma que os odiou, com a mesma intensidade que lhes desejou a morte, deseja agora que tenham uma longa vida de aprendizado e esperança, para que não vivam em função da negritude do rancor, do azedume do ódio e da tristeza da dor. E deseja também que encontrem paz, no perdão que agora os concede.
- Sábia decisão. - diz a Morte.
Ele a olha e sorri - pela primeira vez, em muito tempo, com alegria.
- Agora podemos ir. - diz ela, estendendo-lhe a mão.
- Estou pronto.
O vento já não grita, sussurra ; a chuva não castiga, acaricia a terra - berço e túmulo de todas as coisas vivas do mundo . Os trovões cessam, as nuvens se despedem, dando lugar às estrelas, que irradiam sua alegria. Uma luz intensa os devora, sumindo um segundo após. E no seu lugar, surge uma estrela: bela, brilhante e, sobretudo, viva.