Cicatriz
A fumaça branca saía com força do bico da chaleira preta, sobre a chapa também preta, que fora lambida pelo fogo da aroeira colhida logo ali no fundo do quintal. Tinham o luxo de escolher de lenha para fazer melhor o fogo, a melhor brasa. O fogão caiado era orgulhoso e só aceitava combustível do melhor, sem adulteração.
Naquele dia, ainda com apenas oito anos, Dadá escolheu uma tora de pau dentre as empilhadas no canto da cozinha, que não goteirava. Era difícil encontrar um lugar na casa branca mesmo sem nunca ter recebido pintura, com este privilégio de não goteirar.
A chama do fogo triplicava e a água dançava tango, valsa, samba e até lundu, dentro da chaleira. A tampa precisava, às vezes, dar vazão à evaporação, provocando aquele barulhinho de bateria de um bom conjunto.
Ficou ali a observar essa sinfonia, como se fosse algo novo para ela. Sua mãe havia saído com seus irmãos maiores e a caçulinha dormia na rede de embira, tecida pela mãos habilidosas da vovó Tunica.
Não resistiu. Precisava destampar a vasilha de qualquer maneira, olhar melhor dentro dela, aquele fervilhar de águas, que aguçava a sua curiosidade. Apanhou um velho tamborete que seu pai usava para por o pé quando ia colocar munição na espingarda de caçar veado e tentou equilibrar-se sobre ele. Nas duas primeiras tentativas, o chão aparou-a com segurança. E na terceira vez lá estava ela como uma vencedora, no primeiro lugar do pódio. Pegou na coleção que decorava a cozinha, uma colher de pau, ficou a brincar com a tampa da chaleira e com as gotículas de água desvairadas, à procura de um lugar para descansarem da dança ofegante, naquele salão congestionado. Era tão lindo quanto perigoso.
Depois agarrou com força a alça da vasilha pesada de ferro cru.
Não resistindo o peso e a alta temperatura na mão, desequilibrou-se do tamborete e caiu levando água fervente sobre o tórax.
- Pai!!!
O grito ecoou pelo milharal do quintal chegando até à mata levando parte da sua dor para seu pai que ouviu o chamado e veio correndo.
- Filha o que houve ? - perguntou por perguntar; já sabia do
acontecido, pelo cenário pintado no chão da minúscula cozinha.
- Por que fez uma besteira dessa, Dadá?
Perguntou quase chorando acolhendo-a sobre os braços fortes.
Dadá se esforçava para responder a seu pai, mas a dor era insuportável.
- O que vou fazer, Meu Deus? Não tenho remédio para queimadura, em casa...
O pai andava desesperado, ouvindo os gemidos da filha, até que lhe veio a idéia de fabricar algum remédio.
A menina começou a se recuperar quando recebeu o frescor de um remédio sobre o local queimado. Era uma mistura de água fria, rapadura raspada e cânfora.
A garapa nada tinha contribuído para melhorar a gravidade do ferimento de terceiro grau mas fora usada com tanta fé pelo pai que produziu um efeito anestésico jamais esperado.
'' Já não dói tanto." – murmurava a pequena Dadá.
A queimadura tatuou o pele macia da jovem garota.
Meses depois, estava Dadá à beira do riacho, deitada sobre uma pedra, enquanto a mãe a roupa lavava, começou a cavoucar a crosta de um pedaço de bolo de puba e a jogar para as piabas.
Para ela, aquele corre-corre das bichinhas dentro d'água era uma beleza. O balé se evoluía na água cristalina, sem correnteza. Pegou com a mão algumas e colocou sobre a barriga ainda ferida, provocando uma coceirinha quando elas pulavam em busca da água. Dadá as devolvia ao riacho quando percebia que estavam desfalecendo. A coceira aumentava e ela começava a coçar, a friccionar com força a unha não muito limpa.
Foi uma idéia tão inconseqüente que ela mesma não sei ao certo, de onde veio. Péssima idéia. Viu o sangue brotar e a infecção chegar. Infecção... Ah, não sabia o que era isso. Certeza tinha do frio e febre que chegaram quase de repente. Sua mãe, uma senhora bonita e enérgica, procurava adivinhar a razão da febre da filha: - da queimadura não é, porque já está quase sarada. Deve ser a garganta inflamada. Amanhã, vou lhe aplicar uma injeção para cortar o mal pela raiz, - ela dizia.
Em silêncio, Dadá escondia a razão da sua febre. O medo do corrião com uma fivela na ponta, era insuportável.
Teve uma infeliz idéia:
" Quando todos dormirem, vou correndo à casa da curandeira, para ela me curar."
Não deu outra. Levantou-se devagarinho procurando não tropeçar em alguma coisa, para não fazer barulho. Mais tarde, lá estava ela, quase em convulsão, tomando o chá da velha bondosa. Deitou-se sobre um catre sem perna e ficou a esperar fazer efeito. Não demorou muito e já se despedia da benzedeira, fazendo os agradecimentos. Ao abrir a porta, que se despencava do portal, recebeu uma rajada de vento no rosto, anunciando que a chuva estava chegando. Não dava tempo de chegar em casa apesar de ser logo ali. Fechou a porta novamente, rodou a tramela e esperou a chuva passar. Invernou. Ela já não dormia, com receio de sua família ter acordado e visitado o quarto em que dividia com a criançada.
Logo que a chuva deu trégua, escutou seu nome ecoar pela mata, misturando-se com a claridade das lamparinas de azeite de mamona, que mais pareciam bando de vaga-lumes. Em desespero, todos a procuravam. Descobriram que não estava em casa.
Não fugiu. Enfrentou a situação caminhando em direção às luzes, respondendo aos chamados. Tentou justificar as suas razões, mas...
Recebeu ali mesmo o seu castigo pela desobediência e pelo susto causado a seus familiares. E, a sua cicatriz aumentou de tamanho.
Juraci de Oliveira
Pirapora, MG
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