O Sol de Francisco

Fazia uma década, um século, um triênio, sei lá, não se lembrava mais. Os Homens cresceram. As formas ganharam novas formas, as cores multiplicaram-se num arco-íris multicolor, os átomos tomaram conta do assunto, Yuri Gagary viu o esplendor de uma terra redonda e azul longe daqui. Francisco continuava a ajuntar palhas de milho para o gado comer. Tecia suas preces junta a mulher que fazia o jantar com capricho e colocava na mesa pontualmente às 17 horas. Não desejava vencer, queria ser vencido.

A enxada é marca que raspa a terra. Raspa o sentimento de Francisco: “muié, num vô no armazém aminhã, purque vou toar o gado pro patrão e conduzir até a cidade na exposição. Tá bão Chico, dispois ocê vai.” Arregaçava as mangas da camisa xadrez em remendos caprichados e rumava com os vaqueiros rumo à vaquejada na cidade.

“Eita coisa boa”, falava Francisco selando um cigarro de palha e com a emoção estampada no rosto redondo e feliz. Desarreava a montaria e se levava pro boteco mais famoso da cidade. Lá reuniam todos os vaqueiros e peões. “Uma branquinha aí, Chico?” Perguntava Seu Nicanor. O papo dos homens girava em torno do melhor gado e melhor peão da região. “Juro que este ano ganha o gado curraleiro”. Repetia satisfeito. Um peão juntava sua imagem admirada e boa conversa ao grupo e assim penetravam na noite como agulha no saco de estopa.

O locutor esbravejava e ao mesmo tempo encantava a multidão com sua voz grave de tenor. O berrante tocava nos corações dos homens simples e assentava na alma das mulheres como uma promessa de futura união cível. Os jovens rapazes tomavam um gole de cachaça na expectativa de criarem coragem para cortejar alguma moça dos arredores. Santo Antônio, nessa época, tinha trabalho dobrado, além de proteger os vaqueiros e peões, tinha de arrumar casamento para os homens e as mulheres esquecidos pelo destino. No meio do palanque, os cantores regionais faziam a alegria do povo. A viola zunia nos dedos dos violeiros e a sanfona gemia pela arena afora. “Hoje eu arrumo uma muié”, dizia um vaqueiro solteiro da fazenda rival da que Francisco morava.

Depois da festança, Francisco reunia o gado e tocava de volta para o lar. Apeava do cavalo e adentrava a sala da casa grande. A mulher recebia-o com um abraço e tornava aos afazeres em silêncio. Este, por sua vez, entregava-se a contar os causos do evento. “Foi bão que só, muié. Precisava vê.” Repetia satisfeito. A companheira acenava contente com uma faca na mão e com as lágrimas escorrendo pelo rosto pelo efeito da cebola picada para o jantar. Não tinham filhos. Francisco era estéril, mas a esposa assumia a culpa. “Não sirvo pra mãe, Chico.” Repetia sempre angustiada. “Deixa disso, muié. Pra que fio com tanto bicho pra cuidá?” consolava-a em gratidão.

A terra não era mais o centro do universo. Copérnico divulgou essa idéia muitos anos antes. “Chico” não sabia disso. Mas sabia que o centro do universo estava nas mãos de fada da mulher. Sabia que estava nas suas quando empunhavam o arado contra o sol e seguravam os arreios com firmeza quando conduzia a montaria tocando o gado. O lugar mais importante e que dava um fim em si mesmo era sua casinha de varanda vasta com quintal. Um cercado de madeira e as sombras das árvores desenhado imagens fantásticas quando o sol se encobria atrás das montanhas ao longe. Sabia que homens ricos eram tristes. Sabia que o Coronel Fabrício desviava a atenção da sua desilusão ostentando o coldre pendurado por um cinto de couro carregando um revolver que mais assustava que resolvia. Sabia que o fato de não saber desenhar as letrinhas miúdas não o deixava menos ou mais feliz. Isso só dependia dele. Se desse importância a isso, talvez, buscasse a pena do saber e tornasse mais um desgraçado traçando toda a sua vida em busca de descobrir o sentido das coisas. Mas não, simplesmente ele sentia as coisas. Era as próprias coisas findadas nas respostas e perguntas em si mesmas. Se escolhia isso por não saber outros caminhos, não se sabe. Mas sabia muito bem os caminhos abertos no seio da terra que o levava sempre de volta para casa junta da sua eterna razão de viver. Às vezes, entediado, tirava as botas compridas, desatrelava as esporas e as pendurava num prego fincado na parede da sala e estendia a rede entre as árvores que faziam frente à casa, deitava, escanchava as pernas e ficava ouvindo a cantoria dos passarinhos procurando galhos para dormirem.

De manhazinha, sempre tinha leite bem quentinho para tomar. Bolo de fubá feito por Ana e doces e geléias para passar no pão assado na hora. A lenha trepidava no velho fogão de barro e as panelas de ferro já começavam o trabalho para mais tarde saborear a vida pela boca que sabe sentir todas as coisas boas e más. As vaquejadas, o trago na cachaça feita artesanalmente no moinho de cana do Seu Juca, a arrelias entre os compadres mais antigos, as saudações e apertos de mãos eram os grandes feitos daqueles homens do campo. E Francisco sempre dizia: “Ô, gente boa sô” e se entregava nas gargalhadas mais largas e altas que se podiam fazer ouvir. Francisco já conhecia o sabor da vida, já conhecia o sabor do fel que pode se transformar em pura lição de viver. Francisco era o sol, Ana o luar, ambos o universo.

Já não se vê mais tantos Franciscos e Anas por aí. Porém, essas pessoas estão dentro de cada cidadão escondidas pela eterna busca da felicidade. Francisco agora é o raio distante que quer fazer brilhar a nossa vida. Francisco é uso, é luva e mão em desmedida.

Márcio Ahimsa
Enviado por Márcio Ahimsa em 25/06/2008
Reeditado em 26/06/2008
Código do texto: T1051127
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