A Velha Sabedoria Contemporânea

Vovó dizia-me que haveria um tempo determinado para todas as coisas, aquilo soava aos meus ouvidos como contos enigmáticos que eu nunca entenderia bem o fim ... Jamais imaginava que minha infância seria os momentos mais felizes de minha vida e que ela prenunciava as dificuldades que passaria.
Falava-me em transpor barreiras, revestir-se de poder, saltar obstáculos, vencer batalhas, ser soldado valoroso e jamais fugir da luta. Luz aos meus pés, pois ainda que eu andasse pelo vale de sombra e morte, beberia água viva ... Sábias palavras que encantavam e remetia-me a um mundo de sonhos celestiais, poupando-me em enxergar a dura realidade por qual passávamos.
Quão “Suave” era meu “Caminho”, nele soletrei minhas primeiras frases em seu colo, suavizava meu predestinado sofrimento e me aprestava para adversidades da vida.
Salmista, simples e direta. Apregoava convicta que haveria uma pátria reservada para si e que sua morada era eterna. Preparava-me para sua terna viagem. Súdita. Complacente. Quão bom e quão suave seria que os irmãos vivessem em união. Não há insano que duvide. Tenho certeza !
Resgato na memória sua feição, como era bela, devia ser mui formosa quando moça. Simpática, baixa estatura, óculos no rosto, cabelos em coques sempre presos... Frisos. Grampos. Pente fino. Bobs. Eu não gostava daquele cheiro de óleo de amêndoas que ela usava para penteá-los, até hoje sinto náuseas, do contrário ao seu perfume; lavanda de fragrância agradável, “Seiva de Alfazema”, que lhe deixava cheirosa.
Certa vez eu a vi chorar, acho que foi a última memória marcante que tive dela, naquele dia senti meu coração tremer, frente ao seu desespero e minha frágil existência, não tive nenhuma reação, observei-a naquele choro amargo. Talvez chorasse por toda dificuldade que passávamos ou mesmo rogasse a Deus que tivesse piedade de nós, não me recordo bem os motivos, somente que naquele dia ela pranteou em minha frente e não pude conforta-la.
Nunca soube se fui seu neto predileto, também ela teve cuidado em privilegiar a todos, mas devido às condições de meus pais na época, passei um bom tempo sobre seus cuidados. Na verdade fomos todos amados e não há quem não tenha tido um momento confortante com vovó.
Recordo-me que por vezes senti ciúmes dela, contava-nos histórias bíblicas. Sansão. Davi. José. Assentávamos em semicírculo, cada qual designado em receber um de seus muitos conselhos, sua orientação e benção.
Éramos uma grande família, mesmo com todas nossas indiferenças infantis, fomos acolhidos em sua casa. Quando nossos ânimos estavam exaltados, tinha em mãos um cipó de goiabeira pronto a nos trazer à terra.
- Deixem de “peiticas” suas “quizilas” !!!
Vinha em nossa direção com cipó em mãos e aproveitavamos de nosso vigor infantil, logo desvencilhando de sua investida.
Falava difícil, eu observava aqueles lábios que pronunciava muitas palavras estranhas, mas suave aos ouvidos e fascinava-me o quanto de sabedoria havia naquela simples mulher. Tinha o dom da oração. Oradora. Alguns de meus pesadelos foram interrompidos por uma doce voz na calada da noite, enquanto todos dormiam, suplicava pela misericórdia e a proteção do senhor. Ouvia seus sussurros, orava baixinho para não nos acordar, sabia que em suas preces ela intercedia por todos nós, então voltava a dormir...
Aconselhou-me em ser um bom homem, temente a Deus, honrar meu pai, minha mãe e tinha certeza que eu não pereceria. Foram tantas suas profecias, ano após ano, fazendo-me forte e inserindo-me a um mundo imaginariamente surreal, injusto mas que sairia vitorioso.
No frio, na fome, no relento, em todas adversidades, sentia-me diferenciado. Mantive meu orgulho, minha honra.
Jamais bati as portas alheias para manter-me vivo, quando achava que tudo estava acabado, havia sempre um renovo de vitória.
Respeito. Benevolência. Esperança. Amor ao próprio. Dar-se mais que receber. Servir. “Lança teu pão sobre as águas, que depois de dias o acharás. Reparte com três ou mesmo com quatro pois não saberás o mal que virá sobre a Terra.(...) Que saudades que tenho de minha infância querida, aurora da minha vida, que os tempos não trazem mais ...”

............................................................................................................................................................

Dedico aos meus filhos.

Quando homem, quis tudo diferente daquilo ao qual fui instruído. Corrompi-me, extravasei limites de minhas virtudes, valores e deveres outrora vivo em meu ser. Trilhei em caminhos tortuosos, intoxiquei sonhos, entorpeci desejos, sem compaixão amargurei os corações daqueles que me amaram ... Apossei-me do que não me pertencia e desvalorizei minhas jóias preciosas. Sangrei esperanças ferindo alegrias. Perjurei e prevaleci contra indefesos. Fiz-me surdo ao choro dos desesperados, endureci meu coração, extasiei minha mente. Desejei mal ao meu próximo, senti inveja, traí aquele que daria sua vida por mim. Mesmo sabendo da verdade menti, quando estive sincero sempre almejei a vantagem. Pequei. Despi com muitos olhares, usei em pensamentos, abusei sem permissão, violentei inocentes e tive orgasmos imaginários. Despojei-me depravando fantasiais. Fui homem, sou cão. Deleitando-se, angustiei vidas e tirei possibilidades. Decidi destinos inseguros. Não estive ao lado dos fracos. Aproveitei-me em covardia, posto em âncora afundando os barcos daqueles que sustentava. Afoguei vidas no lamaçal de meus erros. Deprimi-me e comecei tudo de novo
Perdoem-me. Sou pecador. Deus tenha misericórdia de minha alma.

Samuel Moraes
22/06/2008
Sidrônio Moraes
Enviado por Sidrônio Moraes em 22/06/2008
Reeditado em 17/05/2015
Código do texto: T1046102
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.