Minha conversa com o Diabo

“O que é o mal?”, taí uma questão que sempre me intrigou. Resolvi chamá-lo em pessoa, para que me respondesse. Ele, o capeta, o coisa-ruim, o diabo.

A expressão, debochada e cínica. Não era feio, mas repelente e, tal como no Fausto, mancava um pouco. Um tanto quanto mal-educado, entrou em meu quarto na hora de dormir e se sentou em minha cadeira preferida (aliás, a única).

Gi: Boa noite. Creio que já nos conhecemos.

Diabo: Sim, de outros tormentos (examina minha estante). Você tem bom gosto literário, mas seus livros técnicos não combinam entre si.

Gi: Vamos cortar este papo. Explique-me o que é você.

Diabo: Bem, eu diria que esta sua invectiva não foi muito polida. Mas sim, vamos lá (abre meu minidicionário e lê) “Mal. sm. 1. O que é nocivo, prejudicial, mau. 2. O que se opõe ao bem, à virtude e à honra. 3. Enfermidade. 4. Desgraça. 5. Prejuízo.”

Satisfeita? Sei que você já pensava algo assim. Quanto a mim, não passo de um símbolo.

Gi (Em crise): Isto é um pouco superficial, não acha?

Diabo: Compre um melhor dicionário.

Gi: Quero saber o que é o mal para não pensar nele nem praticá-lo. Deve haver algum sinal secreto. Quando eu acreditava em você, bem como em Deus, as coisas eram mais simples. O mal era a desobediência, a agressão e a morte. O desdém, a libertinagem. Era não pagar contas, não ajudar o próximo, beber, ir para a cadeia e decepcionar os pais. Agora não sei.

Diabo: Esse aí é o mal cristão. Família, obediência, propriedade. Você mudou de vida. E veja, policiamentos não adiantam muito. A ocasião faz o ladrão. Be yourself, that´s the question. Mal, bem, tudo acaba em excrementos e vermes... Podridão do túmulo, se você visse, é até legal...

Gi: Isto é para sujeitos sem vontade própria. Gosto de manter em mãos as rédeas da minha vida. Mas já não sei o que é mal imaginário e mal-real.

Diabo: Hum, hum (espia, de longe, minha gaveta de calcinhas). Você está pensando de modo maniqueísta, e ainda cristão. Precisaria viver melhor, ser livre dos seus controles internos, é isso. Fica aí, parada um domingo inteiro, pensando no que é o mal, que coisa tonta. Não vai querer ser má, se for feliz. Comprei um pacote de massagens que é miraculoso, menina, vc tem que tentar...

Gi: Ser livre e ser má são coisas diferentes. Talvez sejam mesmo opostas. Prazer e bem também não se igualam. Exemplo: se eu abrir “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, esperar uma mosquinha pousar nele, e matá-la, aí eu estaria fazendo o mal. Sou livre para fazer isto ou não, bem como para deixar de fazer outras coisas más ou boas. Mas, de fato, ser minimamente bom implica em admitir-se que não se é inteiramente livre de viver em sociedade, fazemos o bem não só pelo outro, mas também pela troca... nisso tudo existe um comércio afetivo complicado. É por isso que eu gosto de gente generosa, gente que dá, simplesmente, não pede nada nem quer nada.

Diabo: Livro bom para matar coisas.

Gi: É, mas um pouco solene e pomposo demais. Prosa bíblica é assim.

Diabo: Olha aí, vc já está falando mal de alguma coisa.

Gi: A idéia de matar moscas foi sua!

Diabo: Que nada, leia sua última fala (Gi volta o texto e percebe que se enganou). Pura maldade.

Gi (suspira): nem tanto... e nem foi criativa.

Diabo: Essa coisa de ser mal é relativa, não existe em si, exceto nos casos mais óbvios. (Enfiando meus velhos óculos na cara) varia por: 1) intensidade/amplitude; 2) sabor; 3) objetos a que se dirige (mente/corpo; amigos, família, desconhecidos de classe/tamanho/forma diferente de você); 4) instrumentos com que é infligido. Quanto maior é o seu poder, mais profunda é a maldade que pratica. Sem contar que o mal só pode ser aplicado a gente, plantas ou animais, nunca a coisas.

Gi: Até às águas-vivas?

Diabo: Esses bichos já têm um sistema nervoso.

Gi: Acho que nós seguimos uma lógica de porcos-espinhos, sei lá. Schopenhauer disse isso. Eles se reúnem para se aquecer, mas caso se aproximem demais, se machucam. Acho que o mal é algo que se faz por medo ou ignorância do outro. Mas é diferente o mal intencional e o involuntário.

Diabo: Não, não. Isso dos porcos só mostra o contrário; as pessoas se arranham justamente porque se conhecem demais, porque são pequenas e precisam repartir espaço, tempo, coisas assim; porque às vezes sentem ódio e precisam aliviá-lo. Dar uns cutucões faz parte da vida. Você pode ser mal e saber demais. Sade era assim. E também a Marquesa de Merteuil. Agora, saber e não saber são coisinhas portáteis, cabem em qualquer parte, cães sem dono. Ser mau é estar falto de algo mais profundo...

Gi: Gostei de “Ligações Perigosas” e da marquesa. Você acaba admirando-a (gosto de gente inteligente). Mas de algum modo comecei a acreditar aí que o mal vem, mesmo, das sensações e dos prazeres, da inteligência feita para alcançar os recantos íntimos do outro, explorá-los e reduzi-los a pó, tão vil e simplificadamente quanto esses recantos eram sublimes e complexos. Emporcalhar e dizer que nada é sagrado é uma característica dos maus. Ontologia negativa, narcisismo sem controle.

Diabo: Oras... Inteligência não é sensação, é mais que isso.

Você gosta de Chianti? Podemos tomar algum, enquanto eu te mostro fotos de maldades. Aí você saberá o que ela é.

Gi: Você é um pervertido.

Diabo: Bem, até que há uma tendência pessoal... tu me temes. Mas o mal como fato ordinário não passa de um cálculo matemático. Você olha para as coisas que te satisfazem, e seu inconsciente escolhe a melhor para você; as outras, você descarta, sem saber o que fez direito, e às vezes, violando algumas coisas boas em si mesmo. Se tudo no mundo fosse decidido com muita ponderação vocês morreriam de fome até decidir se querem almeirão ou cenoura. Uma das coisas que espalham o mal absoluto é não se implicar direito, reduzir as pessoas às curtas medidas do estereótipo, marionetes para o seu querer. É uma excitação perturbada. Não é possível fazer o bem o tempo todo; a satisfação de se fazer o bem não é a única que pode existir na vida, é contra a natureza humana, você acabaria sendo “O Idiota”, ou aquele cara do “Sonho dum homem ridículo”... só sei que os justos sentem prazer em praticar a justiça, mesmo que ela seja, imediatamente, um mal.

Gi: Então, ser mal é trair-se a si próprio.

Diabo: Ser boa foi para você, até agora, fidelizar-se com uma verdade morta, ou seja, uma mentira prática, concebida para um tempo e lugar diferentes. Conheci muitos desses teus santos piolhentos, e garanto que eles eram bem maus. A vida agora pede prazer e não reflexão.

Lembra-se? “There´s something deeply ghostlike. And we are so horribly afraid of the light...”.

Gi: Há momentos em que o velho morreu e o novo ainda não nasceu. Prazer, de novo, eis a sua questão. Eu não gosto de santos piolhentos da Igreja, nem de Igreja alguma; nem creio que ser bom seja ser santo, celibatário, ou algo assim. Pergunto-me, no entanto, se os prazeres são iguais; creio que não, mesmo neles há tons diferentes, talvez regiões cerebrais distintas. O prazer não é mau em si mesmo. Onde estiver sua desvantagem, é onde estará sua fraqueza e os males. Se estiver desempregado, pobre, for feio ou louco, estará frágil para o mal social...

Diabo: Você está embolando as questões. Deveríamos agora discutir se o mal é uma necessidade em si, presente pra todos e, caso seja, porque os mais maus parecem ser os homens, especialmente os inteligentes, jovens, bonitos. Vivem imersos nos preconceitos da cultura, às vezes fingem que os invertem... São-no na aparência; mas eu sei que o Mal não escolhe sexo, idade, condição social. Mas, de todo modo, está na minha hora. Vou a um jantar de caridade (Aproxima-se da janela e olha lá embaixo) Acha que consigo cair suavemente na grama?

Gi: Como foi mesmo que vc entrou aqui?

Diabo: Ho, ho, ho. Tenho truques que vc nem imagina. É que eu estive pensando... beh, será que a Raquel tá afim de me acompanhar?

Gi: Mas... vc não ia pular a janela? Como vai encontrá-la?

Diabo: Aí ela ficaria mais impressionada.

Gi (Pensando numa maldade): Manda.

(Ainda com os velhos óculos, o Diabo esborracha-se no chão. Gi não o socorre, mas procura um psicanalista. A Raquel assiste a Eu, a Patroa e as Crianças comendo goiabada. E eu continuo a pensar em porquê diabos eu não fiz essas maravilhosas lentes anti-reflexos antes)