Todos os olhos
Todos os olhos
Parecia outra pessoa, qualquer um podia ver. O tempo e seus efeitos nos transformam, mas sobre ela era imperdoavelmente nítida a marca dos anos. As mãos e o colo ganharam relevos, com fendas e saliências que o implacável inimigo deixou. Tinha os cabelos sempre presos ao pé da nuca e sob sua cabeça, imponentes fios de branca neve que constantemente lhe cobriam os opacos olhos.
Há alguns (muitos) anos abandonara as roupas de festa. Cobria-se com vestidinhos simples feitos à mão; com finos vieses adornando o decote e delicados botões cobertos pela mesma fazenda.
Abandonou também a intempestividade (escondeu-se). Tornou-se abnegada, comedida, num processo tão gradual que ninguém viu essa metamorfose. É que ela acreditava que assim, só assim; poderia ser uma boa mãe.
Mas tinha deixado no peito, guardado, um amor tão precioso, tão raro e tão seu... Que nunca permitiu olhos alheios sobre ele. Mantinha-o sempre brilhando... Imortal no fundo do seu mar. Vivo apesar dos anos. Moço apesar do tempo.
Olhos atentos perceberam que havia muito tempo que ela não saia pra passear. De alguma forma gostava de estar só. Era nessas horas que lapidava em sua memória a jóia, o inestimável tesouro que encobria em si. Porém uma caminhada sob o sol com os netos lhe faria bem aos ossos, foi o que disseram. E inconscientemente, tinha razão.
Olhos mais atentos foram testemunhas de quando seus olhos tornaram a brilhar como faróis indicando a direção em meio à tempestade. Quando levou as mãos aos cabelos e os soltou, fazendo-os dançar ao som da brisa morna daquela tarde. Quando ajustou no corpo o vestido e como ele (o vestido) já parecia diferente, pois se colocou ereta, respirando fundo e sustentando os seios.
Olhos mais atentos viram quando o seu rosto se iluminara em um largo sorriso e o quão estéreo soou sua voz quando cumprimentou aquele senhor. Ela o apresentou como um velho amigo...Mas olhos mais atentos souberam que ele fora mais, muito mais que isso.
Aquela tarde ensolarada a trouxe de volta de onde quer que esteve e desde então, seu tesouro já não o ocultava mais... Todos os olhos podiam ver.
Adriana Kairos