ANTÕNIO BENEDITO DE LIMA.
Meu pai era a águia forte que voava longe em busca de alimento para os filhos. Ele mesmo se definia como “um grande guerreiro”. Viajava tocando tropas do Piauí ao Maranhão, Pará e Goiás, Ceará e Pernambuco, vendendo alho e cebola e abastecia a clientela da circunvizinhança com tecidos, condimentos, tintas para tingir roupas e outros produtos industrializados. Assim viveu sua juventude, sem luxo e sem lazer. Tudo que fazia era para dar mais conforto à família. Homem de muita luta e destemido, costumava dizer que só temia aos castigos de Deus, lutava às vezes com forças contrárias, enfrentando fogo e tempestades, malquerenças e perseguições, mas em seu modo austero de ser escondia a fragilidade de um coração humilde, piedoso e a bravura de um forte guerreiro. Ele contava que, certa vez, numa viagem bem-sucedida, vendeu todo carregamento e também a tropa. Por fim, achou bom negócio e vendeu também o animal de montaria, passando a fazer o percurso de um Estado pra outro a pé.
Eu vinha sozinho, só eu e Deus; de repente, apareceu no meio do caminho um tamanduá-bandeira enorme. Joguei um rebolo para ver se o bicho dava a estrada, mas nada! Ele ficou em pé e abriu os braços que nem um padre celebrando a missa! Pensei em puxar o revólver e dar um tiro pra cima, pra assustar o animal, mas depois me veio o pensamento: “Não vou fazer isso não! Pode ser que tenha algum malfazejo por perto, e ouvindo o tiro venha me atacar e roubar”. Saí da estrada, dei uma volta bem grande e tomei o caminho mais adiante. Compadre, padre ficou lá de braços abertos, celebrando a missa. Foi o único vivente que me fez sair da estrada.
Órfão de pai com apenas um ano de idade, tinha muito orgulho porque seu padrasto, Mariano Grande, a quem chamava de ti Mariano, o considerava como filho.
- Ele não me chamava não, mas quando saía para trabalhar eu era o primeiro a acompanhar.
Trabalhador incansável, bom pai, bom filho, bom irmão e amigo, trazia consigo as suas fraquezas. E, quando a veneta lhe apertava, descarregava ressentimento em quem estivesse mais perto. Apesar desses impulsos nervosos que o acometiam vez por outra, viveu sem fazer mal a ninguém, apenas desabafava quando se achava injustiçado
Muito amoroso, embora escondesse esta virtude por trás de um machismo austero, era comum encontrá-lo gracejando com a filha caçula, chamando-a “ponta de rama” ou minha “doutorinha”. Pouco letrado, possuía rara inteligência, contava a história de suas viagens com enorme riqueza de informações:
Eu era assim: um homem como eu, botar a força que eu botei, homem nenhum no Brasil botou. Com quinze dias de casado, arribei daqui com Vigário tocando tropa até Goiás. Vigário é primo de minha Senhora e casamos no mesmo dia. Viajamos muitos dias até chegar em Carolina do Maranhão. Lá fiquei sabendo que do outro lado do rio, na cidade de Boa Vista do Pe. João , em Goiás, tinha um grande comerciante chamado Borgim que era muito rico e comprava tudo que se oferecesse a ele. Atravessei o Tocantins e vendi tudo, a minha mercadoria e a de Vigário. Eu disse: “Borgim, você tem barco... Mande buscar do outro lado!” Ele respondeu: “Eu tenho quatro barcos, mas desceram o rio. Tem João Carteiro, empregado federal, ele pode comprar e vender e passar com qualquer carregamento pra lá e pra cá sem pagar imposto ! Vou mandar chamar ele”. Eu senti que Borgim tava temendo a fiscalização. Nisso passa o pobre homem e Borgim gritou: “Ei João, vá buscar um carregamento do outro lado com esse moço!” João disse: “Eu só vou entregar umas cartas e uns telegramas e volto já”’ Ele demorou pouco. Botamos a mercadoria na embarcação e entrei com ele. Vigário não entrou. Navegamos pouco tempo e começou a soprar uma tempestade maluca de dar por riba. Eu só tinha visto tempestade daquele jeito no mar! Eu temi e disse: “João, vamos voltar, deixar parte desse carregamento...” Ele voltou, encostou o barco e disse: “‘Desça, eu vou sozinho!” Aí Vigário chamou dois remador, entramos noutro barco e começamos a travessia. Eu notei que o barco de João estava afundando, então eu disse: “ Vamos socorrer aquele barco”’. O dono da embarcação respondeu: “Eu tenho responsabilidade, andando mesmo que seja com um só passageiro, enquanto não botar em terra não socorro ninguém na vida”’. Naquela mesma hora o barco de João começou a afundar e ele caiu n´água todo empanado e gritando por socorro. Todo mundo da cidade correu pra ver... Outros barqueiros vieram ajudar, mas não conseguiram salvar ele. Pegaram só os volumes, uns já iam afundando, eles disseram e eu acredito neles. Aí nós chegamos do outro lado. Borgim foi me vendo e disse: “Rapaz, contei com sua morte!” Eu contei tudo que tinha acontecido: Desconfiei do perigo e pedi a João pra voltar. Eu só falei uma vez, Deus tocou no coração dele. Ele me deixou e foi sozinho. “Seu Antônio, se fosse outro não queria seu carregamento nem de graça! Mas se você tiver a fortuna de recuperar, bote pra secar, dê dois dias de sol que eu recebo tudo”’. No segundo dia, Borgim disse: “Seu Antônio, use de consciência! Se você ver que essa mercadoria vai me dar prejuízo, dê mais um dia de sol! “. “Tá certo, tem uma parte que já secou, mas tem outra que pode ainda dar prejuízo”. Aí eu dei mais um dia de sol e ele me pagou pelo contado.
As histórias narradas por meu pai foram gravadas por José Lima, em 21.03.1976, em fita K7 e hoje encontram-se conservadas na forma de CD. Ele foi um lutador, um batalhador e como ele dizia: “Um grande guerreiro!” Arriscava sua própria vida: viajava por regiões inóspitas a pé e, na maioria das vezes, sozinho. Atravessava rios caudalosos em condições precárias de segurança ou mesmo combatia incêndios provocados pelas queimadas. Tanto que, certa vez, apagando um fogo que avançava queimando cercas e pastagens, teve o olho esquerdo atingido por uma brasa e quase ficou cego de uma das vistas. Decerto, muitos dos terços que debulhávamos em casa eram em sua intenção. Tinha os nervos à flor da pele e isso nos deixava preocupados. A mamãe com muito amor e amizade conviveu com ele aceitando-o com suas qualidades e defeitos, até que a morte os separou.
LIMA,Adalberto; SOUSA Neomísia. Saga dos Marianos