VOVÓ DELFINA
Delfina Francisca de Lima, segunda esposa de vovô Mariano, era alta e delgada e de cabelos negros. Dizem que tinha sangue de alguma nação indígena, mas não conseguimos juntar as provas necessárias.
Em nossa pesquisa de campo, retornamos a Santo Antônio de Lisboa, antigo Rodeador e Bocaina, colhendo informações dos mais velhos, inclusive sobre nossa progenitura e consangüinidade com Borges Leal, desbravador daquele sertão no século XVIII. Em Bocaina, Joaquim Lindório prestou-nos relevantes informações e com seu jeito engraçado, disse-me: “Mas você é prima de Lolóia. Ele conhece a parentela mais do que eu. E você vem à Bocaina pra me perguntar essas coisas!”
- Parente! Lolóia já fez a viagem para o céu... Lá é mais longe do que Bocaina!
Mulher irrequieta, minha avó Delfina não gostava de ver o tempo passar sem que se ocupasse em fazer algum serviço. Nisso, reconheço que herdei alguma coisa dela: caráter, atitude, personalidade e gosto pelo trabalho. Morávamos muito perto de sua e a visitávamos com muita freqüência. Mamãe contava que na hora de voltarmos, enrolava-me na saia da vovó para ficar com ela.
Na época das farinhadas eu e Maria dos Remédios éramos as primeiras convidadas para a “festa”: raspar mandioca, lavar a massa e espalhar a goma nos jiraus para secar. Divertíamo-nos muito com toda aquela movimentação: prenseiro espremendo a massa, o forneiro manipulando o rodo transformando a massa em farinha... tudo era divertido, até mesmo ouvir o banqueiro cantar em sua linguagem cabocla: “Bota mandioca na banca, ê, ê, á, / que eu quero trabaiá/ bota mandioca na banca, ê, ê, á,/ qué pú caititu relá”.
Na verdade, éramos muito pequenas e não tínhamos compromisso com o trabalho, mas agíamos como se tivéssemos.
A avó Delfina deixou-nos bons exemplos de trabalho, sabia fiar o algodão e tecer bonitas redes com varandas de vários modelos, fazer roupas de algodão cru e outras peças como pavio de lamparina e ceroulas. Caprichosa e ágil na almofada de bilros, produzia lindas e invejáveis rendas, babados, bicos e toalhas. Ficava vendo aquilo. Magnífico trabalho! O desenho que se ia formando, o som dos bilros se chocando e a velocidade com que mudava o lugar dos alfinetes (espinhos de mandacaru) tudo me impressionava.
Certa vez, me empolguei tanto com o trabalho artesanal que minha mãe arranjou com vovó uma almofada, os bilros, os desenhos das rendas feitos em papelão, os espinhos gigantes de mandacaru e contratou uma rendeira para me ensinar a arte. Anica, com muita habilidade e paciência, ensinou-me a lidar com os bilros e a almofada. Aprendi mexer com aquilo tudo, fiz muitas rendas, bicos e enfeitei roupas, no entanto não me sentia segura ainda. Estava na puberdade e, por conseguinte, meus projetos de vida apenas se delineavam na mente, sem muita firmeza.
Em um daqueles dias, chega o tio Pascoal, o caçula dos tios, e diz: “Chiii... Vai ficar para titia, moça rendeira não se casa!” Arregalei os olhos grandes, castanhos e brilhantes, mirei-o como se perguntasse: “Isso é verdade ou brincadeira? Moça rendeira não casa?!”
Ele não percebeu minha reação. Não disse mais nada e se retirou. Então pensei: “fazer renda é bom, mas ficar para titia não está em meus planos”. Naquele mesmo dia desisti de ser rendeira. Devolvi a almofada, os bilros, alfinetes e os desenhos, sem explicar o motivo que até hoje era segredo meu.
LIMA, Adalberto;SOUSA,Neomísia. Saga dos Marianos