AS MARCAS DO BAÚ
Certo dia, um desses amigos fiéis e bons que sempre nos acercam, perguntou-me, triste como estava, sobre as cicatrizes que a vida nos presenteia, quando sentimos em nossa pele os dissabores de uma traição.
Primeiro sorri, para só depois, olhando em seus olhos, falar com a expressão que minha verdade fazia reverberar. Pobre de alguém que seja tocado pela solidão das multidões! Antes não ouvir o vento ou enxergar o arco-íris. Respondi-lhe com a força de um carinho amigo: as marcas da vida, guardo-as fora do corpo em baú fundo e pesado, há anos-luz de distância da memória. Para que me lembrar de coisas pardacentas, sem encanto algum? Deixo-as em suas próprias finitudes enquanto escaras do opróbrio e da tristeza.
Sou-me feliz, procuro a alegria dos instantes da vida. A inveja e a lamentação, varro-as com vassoura de ferro, para não me sujar o caminho onde aninho meus passos de bondade e de alegria.
Cedinho, quando me levanto para ir aos meus locais de trabalho, respiro satisfeito e aí alcanço a estrada que deverei cruzar. Transformo-a em um sonho rotineiro que, se não me é doce, também não me é tão amargo. O que eu abraço como meu é o que me eleva com dignidade e luta merecidas. Não ouso cavucar lugares ímpios ou aprender hábitos insanos. A vida me mostra o que quero e o que não devo querer. O equilíbrio entre essas duas coisas é o que me torna digno de existir. Acho-me um bom sujeito.
Suas marcas ruins, que as leve o redemoinho do tempo desprezível e que não só de lamentos viva sua memória. No mundo há maravilhas intermináveis que não costumamos querer ver. Um pôr-do-sol pode-nos ser mais um colírio de que prenúncio de um dia de luta árdua e inglória. O amanhã, devemos acreditar, será apenas um dia tão interessante quanto tantos outros que vivemos ou viveremos com harmonia.
O amanhã, assim devo pensar, trar-me-á experiências boas, vivenciadas e depreendidas do ontem que já vivi. As marcas nos vão ficando silentes, glórias ou inglórias, mas apenas marcas. O que dermos importância na vida, será o que nos importou sentir profundamente. É por isso que não procuro dar valor às marcas importunas ou áridas do viver, para não ter que dormir com elas entre as paredes do meu quarto, nem delas tirar lições desagradáveis. Meu baú trancafia todas: a seleção das boas faz meu coração cristão, cheio de esperanças no homem e na vida, sem deixar de registrar as lágrimas do cotidiano que meus passos encontram, como nos é naturalíssimo até.
Quem sabe, quando os anos me derem os cabelos brancos e o supra-sumo dos sentimentos vivenciados, poderei dizer maravilhado que a vida me foi um grande baú de encanto e de felicidade. Quero transportá-lo para outra vida que me derem os anjos, leve como uma pluma que voa serpenteando no vento manso da bonança, porém cheio dos atos que me mandou tecer minha consciência cristã de homem sempre renovado na fé da sucessão dos dias ensolarados e no áulico olhar do ocaso.
Deverei brincar com as marcas de imprudência ou de despreparo dos meus verdes anos. O que me ficar sedimentado será bom. Encontrar-me-ei a mim mesmo como uma boa criatura que deixou frutos adocicados para serem degustados pelos pósteros das gerações que irão me seguir.
- Como é que você consegue abrir sua cabeça, retirar dela as coisas ruins e guardá-las em um baú?
- É melhor que você continue o pescador de sempre. Meus discursos mentem muito diante da realidade que você consegue palpar.
- Piorou! Agora é que não entendo nada...
- O mar está bom pra peixe?
- Hoje a lua vai ajudar.
- Amanhã cedo eu retorno. Nunca mais comprei uma curimã fresquinha. Até Zeca