A Academia
-Ele ia a todas as reuniões. Manso de espírito. Aprendera a tecer enredos envolventes que prendiam os leitores. Colecionava prêmios literários – a leitura ocupava-lhe as noites de insônia tão constantes em sua vida.
Saulo, o acadêmico, se adonou das boas letras e fez sucesso. Apesar de barulheiro em suas fábulas, soube viver a simplicidade. Censor de si mesmo, aprendeu a errar pouco porque trabalhava letra por letra, palavra por palavra.
Findas as palavras do acadêmico decano, estalaram os aplausos no salão nobre. Meia dúzia de acadêmicos brigava com a gravidade para se levantar de suas poltronas. A Academia havia envelhecido bastante.
O vento adormecedor da morte o havia feito partir. Adonde sua alma fora, não se sabia ao certo. A aferventação do prenúncio sucessório entre os bocejos das mesmas bocas falantes já era uma realidade. A Academia preencheria a vaga da cadeira de número treze em no máximo noventa dias. Era a regra vigente.
Anojosos pares falavam demais. Velhos desdiziam dos companheiros. Entre eles um pesadelo assíncrono nos corredores da Academia. O brilho de poucos atormentava a maioria absoluta. O venerado líder, acadêmico Hosbil, plantara Narciso diante de seus olhos. Era cenoso seu mise-en-scene diante do palco onde trabalhava. Sobre sua cabeça, ao invés dos louros da fama, agia a coifa do repreensível. Velhos gladiavam contra velhos. A fama era a seiva de seus comportamentos.
Ainda estavam no vento do velório do da treze, e a força da sucessão era mais forte que o respeito ao morto. Nos bastidores a urdidura de uma vontade diferente. Falava-se bastante da reunião da presidência para a análise dos nomes dos novos inscritos e de quem deveria ser convidado para preencher a cadeira vaga. A pré-reunião acontecia nas trocas de telefonemas e nas conversas nos corredores do prédio.
Um velho guardião do prédio, seu Vicêncio, a quem a cifose havia posto uma túnica ao corpo, morava nos fundos. Cadeira por cadeira ele as limpava. Passeava entre elas confabulando com as almas dos que se haviam ido. Sorria, talvez lembrando-se de coisas acontecidas. Algumas delas lhe punham na lembrança azedumes desinteressantes e ele as maldizia mudando seu humor.
-O presidente chegou, Vicêncio?
-Ainda não, acadêmico Ivo. Não deverá tardar.
O acadêmico deixou o recinto. Demorou muito para vencer as poucas dezenas de metros até a sala principal. Foi-se, arrastando os pés antigos, seguidores nonagenários das letras. Homem de humor instável em dias diversos. Possuía almas diferentes para dias desiguais. Sonhava em ser o presidente da Academia de Letras onde já se assentava como acadêmico há anos.
Um era cômplice do outro? Nada. Dizia-se nos extramuros acadêmicos que, quando numa roda de três, dela um saía, quem ficasse se encarregaria de maldizer o que se fora. Em se voltando aquele para o mesmo conjunto de antes, era bendito e ouvia elogios encorajadores dos outros dois. Dar as costas nessas ocasiões era muito perverso.
Quando o presidente Hosbil chegou, acercaram-se dele e a reunião não demorou a acontecer. Falariam das novas inscrições para a vaga cadeira treze, seus pretensos candidatos e quais as manobras a adotar-se contra os candidatos indigestos. A começar pela estatura, não escondia sua imponência. Muito alto, era um mulato forte. Admirava-se como orador que caçava as palavras pouco traduzíveis pelos mortais. Gostava de centrar sobre si as atenções alheias. Vigoroso em suas decisões, não voltava atrás. Inimigo odioso e amigo censor, exigia respeito e obediência dos seus pares, como se fosse ele o maior dos opressores vivos.
-Está ainda vaga a cadeira treze. Quem poremos nela? A nossa porta deverá continuar estreita. Esta casa é nossa. Para ela não poderá vir o inimigo. A cidade está a falar dessa sucessão. Temos um papel decisivo. Importa-nos quem se inscreveu até hoje. Parece ser verdade que o doutor Everaldo o fez. Vejamos esse relatório que acabou de me passar a secretária. Ele está entre esses outros dois. Não vai ganhar. É um homem inculto, de difícil convivência. Pouco me importa se rico ele o é. Não sentará na treze. Não deixaremos jamais.
Entre uma salva de palmas, o acadêmico Ivo falou:
-É rico ele, confrade presidente?
-Não é moral que o senhor me faça, justamente agora, essa pergunta tão infeliz. Quer seu dinheiro, confrade?
-Absolutamente, presidente. Apenas perguntei mergulhado em certa curiosidade.
-Não achei graça na pergunta e não me importarei em respondê-la. Estamos aqui para falarmos de coisas mais sérias. Aprecie outros valores. Seu mergulho de nada lhe valeu!
A reunião acordou seus membros. Um clima bem morno, quase quente, eriçou as idéias da maioria. A sucessão prometia alimentar verdadeira batalha literária. Os interesses da Academia deveriam ser defendidos a todo custo.
Entre seus quarenta membros apenas três eram do sexo feminino. Um esmagador preconceito pouco notado por elas. Tinham vozes débeis. Uma, velha professora aposentada de literatura, outra a esposa de um ex-governador que havia doado à Academia, no seu mandato, uma pequena fortuna retirada dos cofres estaduais, a última uma velha decrépita que nem mais lia. Essa plumagem financeira também regia as eleições da Academia. Prestígio político, fama, dinheiro etc, tudo isso dava votos sólidos e decisivos. O pleito tinha a cor do presidente que a tudo impunha sua força mais do que narcísica, já megalomaníaca, talvez.
A idade azumbra o corpo. As idéias resistem um pouco mais. Quando um homem para de sonhar, não mais existe. A vida fica barreada dentro do corpo, e a alma circunvoa atocalhando a eternidade. Eles, sua maioria, prestacionavam seus votos redesenhando o quadro sucessório. O ufanismo sentava-se na cadeira antes mesmo de seu dono. A inobediência só era permitida a poucos que só se atreviam a fazê-la dado o voto ser sigiloso. O senhor presidente era guindado às alturas para anunciar sua vontade que dizia ser a da velha Academia de Letras. Noticiavam quem poderia vencer. Farpeavam quem queria vencer. Folegando-se, iam à luta no horizonte da vontade presidencial. Narcizo, o velho narcizo, urrava como leão refordilado. Um forte redemoinho angustiado pelos espinhos dos desejos de alheias literaturas provocava-o inconscientemente. Mas era necessário ocupar-se todas as cadeiras. Era desse rearrumar-se que vivia ela, passiva a tudo. Nem ela era imortal, visto que o tempo já abocanhava suas paredes, reafirmando silencioso que nada resiste a ele para sempre. Era assim. Volviam-se as idéias das idéias. Havia um susto no ar rarefeito do salão quase nobre da velha Academia cheia de mortais traquinas.
-Daqui a alguns dias quase a metade de nós não poderá vir votar. A Academia está envelhecendo rapidamente. É-se necessário sangue novo. Até eu, como seu presidente, sinto-me assim. Devemos saber quem convidar para nosso convívio. Não devemos nem podemos alimentar lobos e serpentes para se aninharem entre nós. As letras depois. Primeiro os homens!
-Senhor presidente, que tal votarmos no escritor Saulo Vermelho?
-Nunca! Esse homenzinho não escreve nada, apenas suja as folhas.
-Mas continua a vender uma estupidez de livros mundo afora.
-Você agora o disse certo: estupidez. Não só a venda desses folhetins de sua lavra, como, antes deles, seu bestial discurso.
-Entrou na confraria do livro.
-E daí? Comprou sua vaga. Nós não podemos oferecer-lhe uma entre nós. Esqueçam esse bruxo. Aqui jamais sentará entre nós.
-Desculpe-me, senhor presidente. Pus o carro diante dos bois. Volvo-me ao meu silêncio atencioso. Sinceramente, minhas desculpas.
-Dele necessitamos, caro confrade.
Tantos sonecavam no fim da sala de reuniões. Outros, a caminho, apenas bocejavam. Horas houve em que o doutor Hosbil falara para cinco ou seis acordados. Decidiram quem apoiariam. A decisão seria absoluta. Mais uma vez a suprema vontade do narcísico presidente deveria prevalecer. O quadro sucessório, agora redesenhado, apenas aguardaria, dentro de cada confrade, a hora de usar os sufrágios encabrestados, torvação para os indesejados pela Academia.
Nos bastidores acadêmicos, almas ufarradas desdiziam do lá orientado. Outros poucos eram silentes, cuidadosos. Folegavam para enxergar as brechas da porta da Academia. Que os ventos soprassem. Os dias, uns atrás dos outros, passariam com diferentes desfechos. Nalgum deles desigual, a vaga cairia noutro redesenho literário.
Ficaram lá dentro após a reunião por mais de duas horas. É que chovia bastante e o vento frio estimulava salvas de espirros e tosses entre eles. Quando saíram, levaram consigo o ranço do pleito defendido. Via-se estampado no rosto de tantos a força do orgulho e da vingança. Na cidade e fora dela houve assunto polêmico, fofoca atualíssima para encher as conversas telefônicas e outras arquitetadas. Saindo do velho mausoléu de imortais, apenas adocicaram a língua para reproduzir seus discursos, além da força de uma matraca. Havia muitos macacos num só galho. Apesar de a árvore ser frondosa, sua madeira não havia formado cerne; portanto, fraca de sustentação. Passível de quebra fácil. Os macacos que se cuidassem melhor. Corriam riscos de morte.
Os jornais noticiaram como nunca se havia visto antes. O velho presidente perdera seu voto. A Academia o traíra. Venceu Saulo Vermelho. Um ano após sua posse era um dos mais cortejados acadêmicos. E assim foi, e assim é, e um dia não será mais...