O ÚLTIMO SORRISO

No verão de 1970, seu último verão, sente-se enfraquecida pela seqüelas das várias moléstias depositadas em seu corpo, tornando-a frágil na vida, sem esperança e até sem vontade de viver.

Clarinda, nascida em 1886,viveu numa comunidade pobre de pescadores denominada Canto dos Ganchos, teve sua vida marcada pelos desafios impostos pelo destino. Casou pela primeira vez muito jovem, aos 16 anos de idade, e aos 22 anos perde o esposo.

Amadurecida pelas experiências do tempo, enfrenta um novo casamento aos 26 anos.

No quarto onde Clarinda se encontra marcando seus últimos momentos, a filha entrou e entregou, em suas mãos enrugadas, o velho pente. Fragilizada, com a ajuda da filha senta na cama e nos brancos cabelos tingidos pelo tempo passa o pente, olhando, no espelho da pequena penteadeira, as rugas de tantas histórias, tantas dores, tantas mágoas. Mágoas de perder aqueles a quem mais amava, o complemento de sua jornada na terra. As rugas que rcebeu quando via enterrar, um a um,entre tantos os que amou e que compactuavam das delícias do seu mundo. Deitou na mesma cama de outrora sobre o colchão de capim do qual não abria mão, pelo costume ou pelo gosto, quem sabe. Olhou o quarto, de todos os ângulos, de todas as maneiras, como se estivesse a procurar algo, então, de olhos na santa, abriu um sorriso estático. Começou a viajar sobre o tempo, das amarguras e das alegrias, de tudo lembrou, foi muito longe, tão longe passou pelo inesquecível cinco de dezembro quando ela abria apenas uma fresta da janela e entre lágrimas e lamentos, agarrada aos quatro pequenos filhos, despede-se de Manoel, carregado num caixão forrado de tecido preto, desce a barranca, rumo à praia para ser colocado numa embaracação que o levará ao cemitério de Armação, sua última morada. Oito remos que batem sobre as águas de Ganchos. Apenas oito remos para conduzir tamanha canoa feita de tronco de garapuvu, construída há poucos meses por Manoel, a única herança deixada à jovem viúva e aos seus filhos.

A casa, o cafezal, e a chácara pertencem aos pais de Clarinda.

Fecha-se a fresta quando mais não se avista a canoa, desaparecu lentamente nas águas claras do mar. Ela olha na parede da sala o desenho do senhor morto num tecido branco, amarelado pelo tempo, pintura das horas de lazer do companheiro e pôe-se a despencar em lágrimas.

Horas mais tarde, puxa da gamela a sobra de uma corvina assada na brasa no dia anterior, coloca sobre a chapa do fogão de lenha para esquentar, junto à chaleira de ferro enfumaçada que fervia a água. O pirão escaldado feito na gamela com o peixe assado é dado às crianças, na inocência não percebem o tamanho do sofrimento da mãe, apenas Miroca, o mais velho, contando com cinco anos, a percebe abatida, mais velha. Mimi pergunta em que horas papai chegará, em soluços ela responde: - papai foi pro céu, filha, não volta mais. - Por que, mamãe, ele brigou com a senhora?- Não, filhinha, papai do céu chamou, agora pronto, come tudo pra deitar.

O colchão de capim, apoiado em cima do estrado de madeira com as colchas de retalhos agasalhavam toda as noites as quatro crianças, e um lado, os meninos, de outro, as meninas, atravessados pés com pés, deliciando-se no sono das tranqüilas madrugadas. No quarto da frente, Clarinda depara-se com o quadro contendo a imagem de Nossa Senhora das Dores, presente que ganhou da avó materna no seu primeiro aniversário. Mergulhada num mundo de incertezas, buscava a proteção da Santa em quem sempre se refugiou nas horas de dor e de angústias. Ajoelhou-se diante da Santa, rezando o terço passando todos os mitérios. Pediu graça e proteção aos filhos, com muita fé, pediu coragem para criar as crianças nessas terras cheias de dificuldades em que vivia. Rezou muito, com muita fé. Depois sentou-se a cadeira posta em frente à janela aberta, e pôs-se a olhar a infinidadae das águas do mar, que num tom alegre clareavam com a luz da vaidosa lua, esplendorosa por sua beleza.

Dentro de casa, apenas um lampião fraco, mirrado, quase sem vida, identificava a janela aberta. Foi uma noite de reflexão. Clarinda pôs-se a meditar sobre sua vida, uma vida de lutas, numa terra ainda pouco desbravada. Lembrou do único irmão, que faleceu jovem e dos pais idosos, que dependiam muitas vezes de seus favores. E agora, aos 22 anos, viúva com quatro filhos. Canto dos Ganchos nessa época contava com pouco mais de cem moradores e ali cada um teria que se cercar de práticas e de conhecimentos que assegurem o seu próprio destino. No dia seguinte, antes do nascer do sol, apenas umas duas horas depois que o galo cantou, estava ela coberta por um vestido preto e sobre a cabeça um lenço que tomava seus longos cabelos pretos, mostrando sinal de luto, mas veemente, mostrando que iria vencer. Socava os grãos de café dentro do pilão e olhava o cafezal pronto a ser colhido. Da janela da casa ao lado, pitando seu cigarro de palha, Mané Florenço cabisbaixo, com pesar, observa a corajosa filha, embora com o coração rasgado pela dor, num momento pálido da vida, priva-se da alegria, mas não se nega à labuta diária. Horas mais tarde todos e dirigem ao cafezal. Na frente, Mané Florenço e Luíza, com as balaias e os ganchos, instumentos inseparáveis da colheita, atrás, Clarinda com os filhos, que divertem-se ao ouvir a avó fazendo cantigas para distrair a turma. Silenciosa, Clarinda caminha, apenas dando atençaõ aos pequenos. No cafezal todos trabalhavam e até as crianças colaboravam com a tarefa, o que não deixava de ser uma festa para elas, cada vez que encontravam um baguinho de café pego, logo gritavam pedindo aposta. Miroca, maior que Mimi, sempre levava vantagem, no dia seguinte era ele quem acordava primeiro e gritava pelo baguinho de café pego, acordando toda meninada. Final de tarde, alguns sacos de café prontos para serem vendidos aos compradores de Tijucas, que passam uma vez por semana para buscá-los. Uma sobre a outra em fileiras, as sacas de café refletiam o suor da tarefa no fim do dia. As mesmas mãos calejadas de tanto afazeres, agora acariciavam os rostos inocentes dos quatro pequenos. Sentada ao colchão sobre o tapete colorido, que ela mesma tecera, guardava no peito a dor da saudade por Manoel, mas o olhar sereno dos filhos caídos em seu colo fazia encontrar dentro de si o entusiasmo de viver.

O universo era pequeno, mas o tempo e a vida eram grandes. E a luta constante se fazia necessária, e era com os olhos e com a alma que tudo poderia ser conduzido. Fosse apenas cuidar do filhos, talvez não sairia tão caro, mas as temidas ondas gigantes do mar da vida lhe exigiam muito mais. A chácara, o cafezal, as criações de galinhas e porcos, o crivo e a costura eram uma a uma passadas por suas mãos, em que a cada afazer lhe mostrava um toque de carinho, tudo com muita perfeição, não se deixando abater, e como a lua vaidosa não deixava o semblante transparecer nunca, o cansaço do corpo.

O tempo passa, dias, meses, anos de flores e espinhos desabrochados na vida desta guerreira, corajosa por natureza, impetuosa por convicção, presente nas decisões.

Do bolso direito do vestido, Clarinda puxa um pedaço de fumo de corda e pôe na boca, aliás esse hábito de mascar fumo, aprendeu logo após ficar viúva de Manoel. Olha a máquina de costura, desprende-se de tudo e pôe-se aos últimos retoques nas roupas das crianças para a novena na Santa Cruz, uma tradição que começou quando ainda era solteira. A Santa Cruz substituía a falta da igreja no povoado, e seu pai foi um dos idealizadores da construção da grande cruz em madeira, colocada no ponto alto da vila, como referência ao catolicismo e mesmo na ausência dos padres, o que era comum, aos domingos a reza sempre acontecia.

Clarinda deixou de marcar presença nos encontros desde o falecimento do esposo, mas desta vez sentia-se na obrigação. Era domingo, 25 de março, o dia santificado da Anunciação a Maria, o dia em que o anjo lhe avisa a presença do filho de Deus, santificado dia, fazia todos comungarem das mesmas idéias em relação à fé, sendo pecado desenvolver quaisquer tarefas e até comer carnes verdes, apenas peixe era usado na alimentação.

E nesse dia foram todos, crianças na frente, enfileiradas um a um sem mesmo pensar em torcer o pescoço um pouquinho sequer para trás, a recomendação da mãe que estava atrás era ordem a ser cumprida, sem questionamentos.

Foram os últimos a chegar, bem perto no momento em que estavam sendo trançados nas mãos os rosários, e ela, tirando do bolso o rosário, viaja pelos pai-nossos e ave-marias do terço, sempre provando a si a sua dimensão na fé.

Do outro lado esquerdo da Santa Cruz, onde estavam todos os homens, estava o tijcano Pedro Flor, se não conhecido por todos, mas por grande parte dos moradores locais. O olhar fixo, um tanto indiscreto, do homem de trinta e sei anos, alto, boa aparência, trajado de terno azul e com um belo chapéu preto de camurça nas mãos, estava dirigido à moça cercada de quatro crianças. Imaginou ele que o luto aliviado era sinal de viuvez de poucos anos. O preto enlutado dos três primeiros anos já lhe havia caído, e Clarinda agora usava um vestido de tom azul com bolinhas brancas desenhadas por todo tecido. A sensatez da jovem viúva não lhe fez perceber que o destino lhe preparava uma lança para novamente flechar o seu coração.

A preença de Pedro Flor no povoado tornou-se constante, fazendo dele um negociante de peixes e café nessa região, visto que negociava por muitos anos nas bandas de Zimbros e Porto Belo. Aproximou-se de Mané Florenço comprando seus produtos, tornando-se amigo e confidente. Relatou a situação de sua vida e chorou quando lembrou que em menos de três anos também ficara viúvo; a esposa morrendo de recaída dias após ter seu ultimo filho, e ele sem nada poder fazer. Não faltavam alcoviteiros e quem mais se destacava nesse momento era o proprio Mané Florenço, que temia partir e deixar a filha só com as crianças em meio ás lutas diárias.

Surpreendentemente, Pedro visita Clarinda após algum tempo, exatamente em uma lua nova após a novena de 25 de março, quando o verão já findava, deixando entrar o outono com os dias mais frescos, tomado pelo sedutor nordeste que visitava os finais de tarde, embriagando as ondas do mar que chegavam à praia, depois de bailar-se uma após outra. E como desta primeira vez, numa outra e em outras tantas, Pedro e Clarinda, contagiados pelos mesmos motivos, vão a igreja na primavera de 1912, saboreados pela alegria do amor. A alvorada primaveril na vida dos dois era compartilhadas pelos pássaros, e as flores do jardim em frente à casa de Clarinda vieram com mais vigor, formando um pequeno universo colorido.

Pedro era caprichoso, já nos primeiros dias pôs-se a desenhar o chalé de madeira em frente à velha casa de Clarinda, uma construção comprida,com quatro aposentos, cozinha, sala e uma grande varanda confrontando com o mar. O artesão que além de construir pequenos barcos, usava suas habilidosas mãos para aos móveis, dos mais simples aos mais ousados, tudo com perfeição, feitos por quem tinha afinidade com a madeira e com as ferramentas. Encheram a casa de filhos, foram oito do casal junto com os quatro que ela teve com Manoel, mais Julia que acompanhou o pai.

Uma família perfeita não fossem as imperfições do destino que marcavam a vida de Clarinda. Pouco mais de um ano casada com Pedro, perde os pais, e para isso arrancava do peito uma coragem invejável, que a impulsionava a querer viver. Foram alguns anos de alegria e Pedro, acometido de uma úlcera, deixa a vida, deixa Clarinda, deixa os filhos. Numa única estação, perde três filhos, e, quando do luto não mais vive, vive a chorar por mais dois filhos, que ainda jovens, partiram.

E, naquela cama, pensativa, olhando a imagem de Nossa Senhora das Dores, já não lhe vêm nem as assombradas lembranças, mais nada passa por ela, a filha caçula sente as mãos geladas e os lábios roxos, sinal do último suspiro.

EXTRAÍDO DO LIVRO "DEVANEIOS DE VERÃO" ACADEMIA DE LETRAS DE BIGUAÇU- 2002.

Págs: 79 a 87.

AUTOR MIGUEL JOÃO SIMÃO